Nas últimas semanas, a pretexto de alterações significativas na área da Educação, têm emergido argumentos diversos que veiculam preocupações de ordem distinta.
Os argumentos favoráveis às mudanças descrevem uma recalibração daquilo que é considerado prioritário no ensino, sublinhando a escola enquanto espaço de aprendizagem e de partilha de conhecimentos, de desenvolvimento de competências, de descoberta. Este tipo de argumento enfatiza aspetos como a motivação e o bem-estar das pessoas que constituem a comunidade educativa, com particular atenção para a discência e a docência.
Por outro lado, os argumentos desfavoráveis a alterações como a suspensão da avaliação de professores e professoras nos moldes em que estava definida ou o fim dos exames do 4.º ano a que estavam sujeitas crianças de 10 anos (e também adultos, embora antes da reposição da Democracia em 1974) incidem na alegada desqualificação de conteúdos e na desresponsabilização de profissionais eventualmente menos aptos para o desempenho das suas funções.
Subjacente a uma saudável preocupação com a qualidade do ensino disponível para crianças e adolescentes está um guião invisível que, por não ser enunciado, corre o risco de passar por elemento constitutivo e inquestionável. Trata-se do princípio da dificuldade enquanto garantia de excelência. De acordo com este guião, tudo aquilo que não resulte em elevadas taxas de demonstrado insucesso decorre de um facilitismo abusivo, com o qual um Estado cumpridor e responsável não pode compactuar. Na tentativa de contrariar a desqualificação, implementaram-se medidas que geraram sempre, e em todos os setores da comunidade educativa (incluindo associações de pais), muitas dúvidas, no melhor dos cenários. E é bom recordar que tais dúvidas não resultaram de pessimismo congénito ou resistência à mudança, mas sim da constatação de que crianças com episódios repetidos de ansiedade antes de exames ou docentes com crescentes taxas de depressão não inspirariam o melhor que devemos exigir do sistema de ensino.
É na escola que as crianças e adolescentes passam a maior parte do tempo (se excluirmos as horas de sono). Esta constatação deve levar-nos a esperar que seja também na escola que crianças e adolescentes estejam em segurança, em contacto com conteúdos transversais e inclusivos, com profissionais motivados para acompanhar alunos e alunas, participando coletivamente na construção de um mundo comum onde o conhecimento é parte integrante da dignidade humana.
Contudo, de acordo com o modelo de excelência assente no princípio da dificuldade, a escola deveria converter-se numa unidade de transmutação de espírito crítico em reprodução conformista, substituindo-se ética, dedicação e curiosidade intelectual pelo tributo a uma linearidade reativa de inspiração pavloviana, visando o escrupuloso cumprimento de indicadores numéricos. Toda a vertente relacional, que confere à escola o sentido de comunidade, é erradicada, confundindo-se obediência com responsabilidade, repetição com aprendizagem.
Não é necessária uma argumentação extensa para demonstrar a fragilidade destes pressupostos, e talvez por essa razão – aliada à urgência de trabalhar para devolver à escola o seu papel insubstituível – as vozes que reclamam o regresso dos exames do 4.º ano parecem ocupar mais espaço. Não deixa de causar alguma estranheza que sejam estas as mesmas vozes que, no passado, utilizaram a expressão “superior interesse da criança” como justificação insuspeita para adiar uma série de direitos que, reconhecemos agora, visavam justamente combater a desproteção jurídica e garantir igualdade de oportunidades e reconhecimento a todas as crianças.
Em causa está, em suma, uma colisão entre modelos muito distintos de bem-estar e cidadania: entre quem se congratula com o facto de apenas colégios privados constarem do top 10 das melhores escolas do país, e todas as outras pessoas que acreditam, enfim, que “o Estado promove a democratização da educação e as demais condições para que a educação, realizada através da escola e de outros meios formativos, contribua para a igualdade de oportunidades, a superação das desigualdades económicas, sociais e culturais, o desenvolvimento da personalidade e do espírito de tolerância, de compreensão mútua, de solidariedade e de responsabilidade, para o progresso social e para a participação democrática na vida coletiva.” (artigo 73.º da Constituição da República Portuguesa).
Por Ana Cristina Santos
Investigadora no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra
Fonte: Público
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