Tinha 15 anos quando lhe diagnosticaram uma neuropatia periférica desmielinizante, doença crónica degenerativa que lhe afeta a mobilidade. Ana Paula Figueiredo tem 40 anos e há cinco que se desloca com o auxílio de um andarilho. É professora do grupo 520, de Biologia/Geologia, há 14 anos, mas por motivos de saúde tem apenas 11 anos de serviço contados. Em 2005, ficou efetiva na Escola Básica Integrada de Velas, na Ilha de São Jorge, nos Açores, e há quatro anos foi colocada por afetação na Escola Secundária Antero de Quental, na Ilha de São Miguel. Neste ano letivo, tem oito turmas do 7.º e 8.º anos do ensino regular. Dá aulas de Ciências Naturais, Higiene e Segurança no Trabalho, tem turmas de alunos com défice cognitivo ligeiro a profundo. De 2004 a 2008, deu aulas em São Jorge. Foram tempos difíceis. “Como, nessa altura, as limitações motoras ainda eram mais graves, e não me conseguia deslocar sozinha, nem realizar as diferentes atividades diárias sem auxílio, necessitei que os meus pais me acompanhassem, tal só foi possível por também eles serem professores reformados. Esse foi um período muito complicado pois não existia, na ilha, fisioterapia especializada nem um hospital com especialistas ou técnicos especializados”, recorda. Teve, por isso, de se ausentar da ilha várias vezes, obrigada a faltar às aulas, perdeu tempo de serviço.
Há aspetos que, na sua opinião, podiam melhorar. Há cotas para a colocação dos docentes com deficiência, permitindo a afetação após três anos de estarem efetivos numa escola. “No entanto, isso, por vezes, implica a deslocação para locais muito afastados de casa, o que é difícil para os ditos normais, mas ainda é mais complicado para quem tem limitações e necessita de apoio da família, às vezes para as necessidades mais básicas”, refere. Além disso, os professores que necessitam de fisioterapia para sempre, como é o seu caso, “não têm qualquer redução de horário, ou são colocados a grandes distâncias dos centros de fisioterapia”. O que, por vezes, implica faltar às aulas ou à fisioterapia. “Os docentes que não conseguem conciliar os horários sobrecarregados pelas reuniões e pelas horas passadas em casa, pois as escolas não têm os espaços e materiais necessários, a preparar as aulas, com as horas necessárias para as consultas, fisioterapia, etc., têm de desistir da carreira docente e passar à carreira administrativa”, refere.
Ana Paula nasceu para ser professora. Apesar de todos os contratempos, não se imagina a fazer outra coisa. O facto de ser portadora de uma deficiência motora limita a mobilidade, mas não influencia a forma de dar aulas. Como se cansa mais facilmente, passará mais tempo sentada do que os seus colegas. “Não existem cuidados especiais”, diz. E os alunos estão sempre dispostos a ajudar. “Antes de usar o andarilho, que também utilizo para transportar a pasta, eram os alunos que transportavam o material necessário às aulas. Independentemente da faixa etária – e este ano tenho alunos dos 12 aos 18 anos -, todos estão sempre prontos a ajudar, chegando a ‘brigar’ para escrever o sumário, apagar o quadro ou ir buscar alguma coisa necessária à funcionária”, conta. Fica muito contente quando vê a evolução dos seus alunos, entristece-se com o crescente desrespeito pela educação, pelos docentes.
Se fosse ministra da Educação, Ana Paula adaptaria os currículos para as turmas adaptadas, tornaria as aulas e os temas mais práticos e as escolas não teriam obstáculos à circulação, permitindo que todos pudessem realizar as mais diferentes atividades. E não só. “Mostraria mais respeito pelos professores que são agentes de ensino e não meros criadores de documentos, ou seja, acabaria com a burocracia, o que levaria a que existissem mais horas para a elaboração de materiais tão necessários às aulas”. E alterava ainda o tempo para a aposentação, “pois a carreira docente é extremamente desgastante”.
Aprendeu sem cadernos, ensina com estratégias
Carla Badalo não vê. Nasceu com um glaucoma congénito. Vê apenas claridade, nada mais. Chegou a andar com uma bengala, agora tem um cão-guia que a acompanha para todo o lado. Mas quando chega a um novo local para dar aulas, o cão-guia tem de perceber por onde pode andar, por onde tem de ir, precisa de instruções. “Não é fácil, não conheço o mundo tal e qual as outras pessoas”, diz. Mas, desde muito cedo, aprendeu que quem tem boca vai a Roma. Assim é. Procurou estratégias para contornar dificuldades. Estudou Línguas e Literaturas Modernas, Português e Francês, sem cadernos ou livros, sem ver como se escreviam as palavras. Como professora, encontrou métodos para ensinar. Em certas aulas pedia a máxima atenção aos alunos para detetarem erros que os colegas escrevessem no quadro. Quem descobrisse erros, se os houvesse, “ganhava” bolinhas, prémios pela atenção.
Carla Badalo é professora desde 2001. No primeiro ano de estágio, deu aulas de Português e Francês. Em 2011, especializou-se em Educação Especial, na componente de deficiência visual, e em 2014 tirou uma nova especialização em Desenvolvimento Cognitivo e Motor. Carla Badalo é de Sintra e dá aulas a centenas de quilómetros de casa, em Viana do Castelo, no Agrupamento de Escolas de Abelheira. Quando começou a ensinar, não tinha materiais adaptados. A situação foi melhorando. Agora tem computador com Braille e com leitura de ecrã. Antes passava a matéria em acetatos ou em fotocópias. Neste momento, está na Educação Especial, coadjuva professores de várias disciplinas na parte da deficiência visual. A Educação Especial é a sua praia.
Os alunos que têm deficiência visual precisam de acompanhamento. Precisam de ajuda em várias atividades do dia a dia. Há coisas muito importantes a ensinar, como contar dinheiro, orientação e mobilidade, treinar a visão. Carla Badalo aprendeu a adaptar-se a qualquer circunstância. O cão-guia são os seus olhos, mas ele precisa de orientações. “Não faz o trabalho por mim”. Mas quem aprendeu sem livros, sabia que era possível ensinar sem ver. E como fazia para corrigir os testes? Depois de algumas experiências, optou por pedir ou pagar, dependia da disponibilidade das colegas, para a correção das provas dos seus alunos. Um processo que fazia questão de acompanhar passo a passo, cada resposta dada. Um aluno não podia perguntar-lhe o que era aquele ponto de interrogação no teste ou por que razão aquela resposta estava mal e a professora não saber responder. “É preciso ter confiança no que se diz e no que se faz”. Se tiver de pagar essa correção, o dinheiro sai-lhe do bolso, não há qualquer comparticipação.
Carla Badalo pede atenção aos colegas que trabalham com alunos com deficiência visual. Precisam de ter alguns cuidados. “Digam como se escreve, as vírgulas, as mudanças de linha, parágrafos, onde ficam os acentos nas palavras, os pontos finais, as maiúsculas”. Não se arrepende da profissão que escolheu. Mas não fica contente quando vê que as cotas para a colocação dos docentes com deficiência não são respeitadas à letra. “Nem sempre há vagas e a tutela não tem isso em conta”. O que está escrito nem sempre é aplicado na prática.
Dar aulas sem ouvir
Lurdes Gonçalves é professora há 18 anos, mas tem apenas 12 anos de serviço contados. Neste momento, dá aulas de Língua Gestual Portuguesa a uma turma da EB1 S. Bartolomeu, em Coimbra. É surda e garante que não ouvir não condiciona o seu trabalho na profissão que tem. “As minhas aulas baseiam-se em jogos, vocabulários, tiro ‘fotos’ com os gestos ligados aos temas.” Visitas a museus são uma forma simples e eficaz de chegar às crianças. “A minha forma de ensinar adapta-se ao tipo de criança e necessidade que cada criança tem. Logo, a habituação torna-se fácil”, refere.
“Uma das minhas maiores alegrias é ver a evolução dos alunos ao longo do tempo, após muito esforço e dedicação”, afirma. Com os colegas não há complicações. Reconhece que a tutela tem lidado bem com os casos dos professores com algum tipo de deficiência até porque, no seu caso, não são necessários muitos cuidados. Mas se mandasse, haveria uma nova regra. “Se fosse ministra da Educação faria com que todos os professores soubessem ou aprendessem a Língua Gestual Portuguesa para que houvesse uma melhor comunicação com os alunos surdos”.
O assunto foi colocado na agenda pela Federação Nacional dos Professores (FENPROF) e pela Confederação Nacional dos Organismos de Deficientes que, em novembro, organizaram um encontro subordinado ao tema “A deficiência e o (no) exercício da profissão docente”, que teve lugar na Secundária D. Pedro V, em Sete Rios, Lisboa. No final, destacou-se a importância de refletir sobre as soluções para melhorar e dignificar as condições de trabalho desses profissionais. Até porque, lembrou-se, da parte da Direção-Geral da Administração Escolar não há resposta aos pedidos de informação sobre a realidade dos docentes com deficiência.
No site da FENPROF conta-se o que aconteceu nesse encontro. Quanto custa a um docente cego corrigir os testes dos seus alunos? Como pode um docente surdo exercer a sua atividade profissional sem ter consigo um intérprete de língua gestual? Em que condições trabalha um educador ou professor com mobilidade reduzida numa escola cheia de obstáculos arquitetónicos ou sem as necessárias adaptações de acessibilidade? Como ultrapassar dificuldades no acesso a equipamentos e materiais de apoio? Estas foram algumas das questões levantadas.
“O professor cego tem que conhecer bem a sala e a instituição em que trabalha, tem que saber usar os equipamentos, tem que deslocar-se com segurança em todos os locais do seu espaço profissional. Autonomia, independência e segurança são fundamentais”, sublinhou Deodato Guerreiro, catedrático, especialista na área das ciências da comunicação, presente no encontro. Por outro lado, Paula Campos Pinto e Patrícia Neca, do Instituto de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa, anunciaram que estão a preparar uma candidatura para apoio a um projeto de investigação, mais concretamente um estudo sobre a educação inclusiva que integrará a recolha de informação sobre a perspetiva dos professores com deficiência.
“Os professores de Educação Especial não têm que substituir colegas. Nas deslocações entre escolas do agrupamento, o professor não tem que pagar do seu bolso a deslocação nem é obrigado a ter carta de condução”, referiu Mário Nogueira, secretário-geral da FENPROF, no final do encontro. “Não se deve confundir direitos legalmente estabelecidos com favores”, disse, acrescentando que, nas escolas, o que está na lei tem de ser garantido pelas direções.
Fonte: Educare
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