Uma das características mais interessantes da nossa Constituição é um certo “ar do tempo” que perpassa as suas normas, o que, decorridos quarenta anos sobre o seu facto histórico genético – a revolução do 25 de Abril –, e depois de sete revisões, a torna algo singular.
De facto, não ocorreria a muitos dos académicos e autores que, atualmente, estudam e publicam regularmente sobre educação e ensino enunciar como primeiro dever do Estado nesta área promover a “democratização da educação” (artigo 73.º).
Hoje, é mais frequente adotar expressões como “universalidade” e “igualdade de oportunidades” (também presentes no texto constitucional) ou “equidade”, para significar o direito de todos à educação, mais próximas de uma terminologia neutra, mais consensual e generalizada pelos estudos internacionais, afastando-se da linguagem de bronze, típica dos textos programáticos puros e duros.
Ora, é precisamente isso que a Constituição portuguesa não faz, num poderoso lembrete de que o ensino universal é um adquirido civilizacional relativamente recente e que há uma relação intrínseca entre democracia e direito à educação, no sentido mais lato da expressão.
Evidentemente, tempos houve em que sistemas políticos de índole autoritária organizaram robustos sistemas públicos de ensino e promoveram uma luta sem tréguas ao analfabetismo e à generalização do acesso ao ensino e à ciência, facto que pode sustentar alguma contestação àquela asserção. Contudo, raramente resistiram à tentação do dirigismo ideológico e da instrumentalização da escola, o que limitou consideravelmente a sua eficácia como veículo de transmissão do conhecimento ao desincentivar a liberdade de pensamento que é fundamental para a evolução do saber.
Nos sistemas democráticos, a regra é o direito de todos à educação o que implica, a par da organização de um sistema de ensino público suficientemente amplo para integrar a totalidade da população em idade escolar (seja sobre a forma de escolas públicas, seja sobre outras formas de generalização da oferta), a criação de mecanismos de apoio social que garantam à população economicamente mais desfavorecida o direito à escola.
Universalidade e ação social
Falar de políticas sociais também é falar de objetivos a alcançar e, a par da prevenção da exclusão social e do abandono escolar por motivos económicos, um dos principais objetivos dos mecanismos de apoio social na área do ensino, no nosso país, é o de assegurar a universalização da frequência da escolaridade obrigatória e da promoção do sucesso escolar, contribuindo dessa forma para debelar o histórico défice de qualificações da sociedade portuguesa.
Para tal, uma das garantias mais importantes do direito ao ensino é concretizada pelo princípio da gratuitidade da escolaridade obrigatória a que nos referimos num artigo anterior. Na verdade, a “isenção total de propinas, taxas e emolumentos relacionados com a matrícula, a frequência escolar e a certificação de aproveitamento e o seguro escolar” na “escolaridade obrigatória” (artigo 5.º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 55/2009, que estabelece o regime jurídico aplicável à atribuição e ao funcionamento dos apoios no âmbito da ação social escolar), a par da obrigação de o Estado criar “uma rede de estabelecimentos públicos de ensino que cubra as necessidades de toda a população” (artigo 75.º da Constituição), dão ao direito à escola um caráter transversal e interclassista.
Um modelo complexo
Contudo estas garantias não asseguram, por si só, a possibilidade de todos frequentarem a escola nas mesmas condições.
A resposta dada pelo legislador é algo complexa. O modelo de responsabilidades públicas na superação das dificuldades económicas sentidas por um grande número de agregados familiares é partilhado entre a administração central (Ministério da Educação) e os municípios (artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 55/2009 e artigo 7.º do Decreto Lei n.º 144/2008).
As respostas são segmentadas por modalidades, organizadas sob o ponto de vista do percurso escolar individual dos alunos: apoios alimentares (distribuição gratuita de leite no ensino pré-escolar e no 1.º ciclo do ensino básico; refeições gratuitas e/ou comparticipadas; ações no âmbito da educação e higiene alimentar), transportes escolares, alojamento comparticipado quando não existe oferta compatível com o percurso escolar dos alunos a uma distância razoável da sua residência e auxílios económicos diretos na aquisição de livros e outros materiais e atividades de complemento curricular.
Trata-se de uma opção que implica uma burocracia pesada, porque obriga a organizar procedimentos administrativos distintos para cada uma das modalidades de apoio social, com a intervenção de diferentes entidades públicas, tendo a vantagem de permitir ajustar as respostas às necessidades.
Vale a pena fazer aqui uma pequena nota a alternativas possíveis. De um ponto de vista concetual, é concebível um modelo de financiamento direto às famílias ou aos estudantes, através de bolsas de estudo cujo montante cubra, por estimativa, os custos de cada fase do percurso escolar. Teria a vantagem de simplificar a organização da ação social escolar e permitirá superar uma crítica que é feita ao sistema de respostas segmentadas, que não perspetiva este sistema com a necessidade de as famílias economicamente carenciadas conciliarem a escola com a esfera doméstica.
O abono de família é o referencial para a ação social escolar
O direito à perceção de apoios no âmbito da ação social escolar está, nos seus regulamentos, conexionada com os escalões de rendimentos determinados para efeitos de abono de família para crianças e jovens (regulado pelo Decreto-Lei n.º 70/2010), devendo os encarregados de educação fazer prova do seu posicionamento naqueles escalões quando os requerem: em regra no ato da matrícula, mas é possível que alterações da situação económica do agregado familiar do aluno, supervenientes ao início do ano letivo, justifiquem uma modificação dos apoios prestados.
Como se disse anteriormente as modalidades são várias e cada uma delas comporta regras próprias. Poderão ser consultadas no Despacho n.º 18987/2009, sucessivamente alterado pelo Despacho n.º 14368-A/2010, pelo Despacho n.º 12248/2011, pelo Despacho n.º 11886-A/2012, pelo Despacho n.º 11861/2013 e pelo Despacho n.º 11306-D/2014, todos publicados no Diário da República e facilmente acessíveis utilizando um motor de busca da Internet. Voltaremos oportunamente a algumas das modalidades de ação social escolar, que merecem, por si só, uma análise mais exaustiva.
Um modelo de alcance limitado
A conexão entre abono de família e acesso às modalidades de ação social escolar traz à liça uma outra variável: a condição de recursos. A aplicação das regras de determinação de recursos a ter em conta na atribuição e manutenção de prestações sociais e outros apoios sociais públicos (o acima referido Decreto-Lei n.º 70/2010) à ação social reduziu o número de beneficiários ao alargar o âmbito do agregado familiar (agora mais próximo do conceito de pessoas que vivem em economia comum) e ao introduzir variáveis que, além dos rendimentos fiscalmente relevantes, ponderam o património familiar (bens ou depósitos bancários, por exemplo) e outras manifestações de riqueza.
Apesar dessa redução, o valor orçamentado ao nível da administração central para a ação social escolar tem vindo a subir, estimando-se, para 2015, que ultrapasse os 200 milhões de euros. A este valor é necessário acrescentar o contributo das autarquias locais, que é muito variável consoante as políticas prosseguidas por cada município nesta matéria.
No entanto, é preciso notar que, no nosso país, o alcance das políticas sociais é muito limitado. Tomando por referência o primeiro escalão do abono de família, é necessário que o rendimento anual do agregado familiar seja igual ou inferior a €2934,54 (€ 244,55/mês) - calculado pela soma do total de rendimentos de cada elemento do agregado familiar a dividir pelo número de crianças ou jovens com direito ao abono de família, nesse mesmo agregado, acrescido de um – para que o aluno possa beneficiar de um apoio total em algumas das modalidades da ação social. Por este exemplo se vê a debilidade das políticas sociais de apoio à infância e juventude entre nós.
Tiago Saleiro
Fonte: Educare
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