Quatro homens que estavam paralisados do torso para baixo há mais de dois anos – e cuja situação era considerada irreversível – recuperaram a capacidade de mexer voluntariamente as pernas e os pés (mas não de andar) depois de um dispositivo eléctrico ter sido implantado na sua espinal medula, revelaram terça-feira cientistas nos EUA. Os autores acreditam que um tratamento deste tipo poderá ajudar milhões de pessoas paralisadas na sequência de um traumatismo, incluindo aqueles a quem nem sequer é actualmente proposto um protocolo de reabilitação por o seu caso ser considerado irremediável.
Os resultados também põem em causa uma ideia-chave acerca das lesões da espinal medula: o facto de o seu tratamento exigir a regeneração dos neurónios danificados ou a sua substituição, por exemplo, por células estaminais. Ambas abordagens têm-se revelado extremamente difíceis – e, no caso das células estaminais, controversas.
“A principal mensagem aqui é que as pessoas com lesões da espinal medula do tipo das destes homens já não precisam de pensar que a sua paralisia é uma sentença para toda a vida”, disse em entrevista Roderic Pettigrew, que não participou no estudo. Pettigrew é director do Instituto Nacional de Imagiologia Biomédica e de Bioengenharia, que faz parte dos Institutos Nacionais de Saúde norte-americanos (NIH, a instância federal que financia a investigação pública nos EUA). “Podem conseguir um certo nível de função voluntária”, algo que o cientista considera ser um “marco” nas pesquisas sobre lesões espinais. O seu instituto financiou em parte o estudo, que foi publicado terça-feira na revistaBrain. A fundação criada pelo actor Christopher Reeve, paralisado na sequência de um acidente de cavalo, também co-financiou estas pesquisas.
A recuperação parcial conseguida por doentes “irrecuperáveis” sugere que os médicos e os terapeutas da reabilitação poderão estar a desistir de ajudar milhões de pessoas paralisadas. É que a terapia física pode simular alguns dos aspectos da estimulação eléctrica fornecida pelo dispositivo agora testado, diz Susan Harkema, especialista de reabilitação neurológica da Universidade de Louisville, que liderou o novo estudo. “Umas das coisas que estes resultados mostram é que o potencial de recuperação dos doentes com lesões espinais é maior do que se pensava, mesmo sem estimulação eléctrica”, explicou numa entrevista. “Hoje em dia, os doentes não beneficiam de reabilitação porque não são considerados um 'bom investimento'. Devemos repensar o que lhes oferecemos, porque a reabilitação pode promover a recuperação de um número muito maior."
Estrela de basebol
O estudo destes cientistas começou com o caso de um único doente paralisado, cujos resultados a equipa de Harkema publicou em 2011. Rob Summers, estrela de basebol universitário, fora atropelado em 2006, ficando paralisado do pescoço para baixo. Em finais de 2009, foi-lhe colocado um implante epidural imediatamente abaixo da zona lesionada. O dispositivo de 72 gramas começou a emitir correntes eléctricas de diversas frequências e intensidades, estimulando os densos fascículos de neurónios da espinal medula.
Três dias mais tarde, Summers pôs-se de pé sem ajuda. Em 2010, deu uns primeiros passos hesitantes.
A sua recuperação parcial tornou-se um fenómeno mediático, mas mesmo os autores do tratamento acharam que a estimulação epidural apenas poderia beneficiar os doentes paralisados que, como Summers, ainda tinham alguma sensibilidade nas extremidades paralisadas. “Partimos do princípio de que os circuitos sensoriais ainda presentes eram cruciais para esta recuperação”, diz Harkema.
Daí que os cientistas tivessem poucas esperanças para dois dos seus três doentes seguintes. É que nem Kent Stephenson nem Andrew Meas tinham qualquer sensibilidade nas pernas. Stephenson estava paralisado desde 2009, na sequência de um acidente de motocross quando tinha 21 anos. Após meses a fazer reabilitação no Colorado, relembra, “disseram-me que nunca tornaria a mexer as pernas, que não havia qualquer esperança”. Mas 11 dias depois de ter começado a receber os estímulos eléctricos produzidos por um dispositivo do tamanho de um baralho cartas – o estimulador RestoreAdvanced, fabricado pela empresa Medtronic e utilizado no controlo da dor –, Stephenson mexeu a sua perna esquerda “paralisada” enquanto estava deitado de costas.
“A minha mãe, que estava presente quando ligaram o estimulador e me disseram ‘levanta a perna esquerda’, desatou a chorar quando consegui”, conta Stephenson. Também eu fiquei com lágrimas nos olhos. Tinham-me dito que nunca tornaria a mexer-me voluntariamente. Os cientistas também não estavam à espera do que aconteceu”, diz Claudia Angeli, do Instituto de Reabilitação Frazer e da Universidade de Louisville, que co-liderou o estudo. “Mas quando Kent se mexeu, pensámos que afinal aquilo talvez estivesse a funcionar.”
Quanto a Meas, que em 2006 sofrera uma colisão frontal com um carro quando regressava a casa na sua mota, ficando paralisado do peito para baixo, os seus progressos de foram ainda maiores. Consegue mexer-se mesmo quando o estimulador não está a emitir sinais eléctricos. Diz que a primeira vez que conseguiu mexer as pernas sentiu-se “novamente uma pessoa normal”. Após meses de reabilitação pós-implante, relata, “consigo levantar as duas pernas sem o estimulador e também consigo pôr-me de pé sem ele. O meu recorde é de 27 minutos, e ainda estou a progredir.” No início, Meas conseguia mexer-se apenas quando os 16 electrodos do implante estimulavam os seus respectivos neurónios espinais à máxima potência.
Ao longo de 28 semanas de terapia física diária, Meas tornou-se gradualmente capaz de mexer os dedos dos pés, os pés, os tornozelos, os joelhos, as pernas e as ancas com uma estimulação eléctrica mais reduzida.
Diga-se já agora que o quarto doente, Dustin Shullcox, também obteve resultados semelhantes.
Estimulação constante
A experiência de Meas fornece pistas sobre o funcionamento da estimulação epidural nos doentes com lesões da espinal medula. Da mesma forma que uma exposição contínua a um alérgeno pode acabar por sensibilizar as pessoas ao ponto de um único grão de pólen as fazer espirrar e ter dificuldades em respirar, esta exposição contínua a impulsos eléctricos “restabelece o nível de excitabilidade dos neurónios da espinal medula”, diz Pettigrew, do já referido instituto de bioengenharia dos NIH. O resultado é que “mesmo o estímulo produzido pelo exercício físico poderá ser suficiente para desencadear uma resposta motora”.
Para além de recuperar os movimentos voluntários, os doentes ganharam massa muscular e sentiam-se menos cansados e globalmente mais felizes. Summers está a trabalhar como treinador de basebol. Stephenson faz raftingnos rápidos dos rios e motocross num sidecar. E até os pioneiros de abordagens concorrentes elogiam o novo trabalho. “Não é uma cura”, diz Barth Green, neurocirurgião da Universidade de Miami, cujo projecto Curar a Paralisia visa tratar com transplantes celulares os doentes com lesões espinais. “Mas poderia fazer parte de uma estratégia que alie a biologia e a engenharia para ajudar os doentes não só a voltar a andar, mas também a recuperar o controlo dos seus intestinos e da sua bexiga”, algo que muitas pessoas paralisadas identificam como sendo ainda mais importante para a sua qualidade de vida.
Os autores do novo estudo pensam que melhorando a tecnologia dos estimuladores, os doentes poderão ser capazes de “trabalhar no sentido de tornar a andar”, que é como descrevem, prudentemente, o que estão a fazer – para evitar o sensacionalismo associado à ideia de “tornar a andar”.
Por exemplo, no estimulador actual, todos os electrodos devem estar ligados ou desligados ao mesmo tempo. Ora, uma estimulação alternada do lado esquerdo e direito poderia ser mais eficaz. Por outro lado, o instituto de bioengenharia dos NIH está a financiar estudos com vista a desenvolver estimuladores não invasivos. Dessa forma, os impulsos eléctricos poderiam ser administrados através da pele e deixaria de ser precisa uma intervenção cirúrgica para implantar o estimulador, acrescenta Pettigrew.
Mesmo nos doentes com graves lesões da espinal medula, e mesmo depois de os peritos terem pronunciado esses doentes como irrecuperáveis, “ainda acreditamos que a capacidade de recuperação existe”, diz Harkema. “Não é obrigatório que uma pessoa nunca mais se consiga mexer.”
In: Público
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