A expressão “condição docente” é útil para denominar um “estado” do processo de construção social do ofício docente - essa expressão foi utilizada como título de um livro comparativo sobre docentes da América do Sul (TENTI FANFANI, 2005). O substantivo “condição” tem uma vantagem: é suficientemente neutro para não tomar posição na luta pela definição do sentido dessa atividade nas sociedades contemporâneas. A docência existe como realidade objetiva (pessoas que ganham sua vida ensinando em instituições escolares oficiais ou reconhecidas pelo Estado). Pode-se estudar suas características tais como gênero, idade, antiguidade, títulos que possuem, estado civil, renda, bens que possuem, etc. Mas, além de possuírem esses atributos, existem também como sujeitos capazes de dar um significado ao que são e ao que fazem. Por isso, quando se quer estudar a “condição docente”, deve-se incluir, no objeto, também, certas dimensões de sua subjetividade, tais como as percepções, representações, valorações, opiniões, expectativas, etc.
Cada docente em particular e o conjunto dos docentes como coletivo tem uma definição acerca de sua identidade como agente social. Mas essas identidades não são sempre homogêneas. Enquanto alguns se autorrepresentam como “apóstolos do saber”, outros se consideram como “trabalhadores” e outros como “profissionais”, “funcionários”, etc. Em outras palavras, o mesmo objeto social pode ser construído de formas diferentes. Nessa construção, a linguagem e os nomes que colocamos nas coisas têm um papel fundamental.
Quando alguém se propõe a fazer uma pesquisa sobre os docentes, deve estar ciente de que o nome que coloca em seu objeto não é simplesmente descritivo, mas tem uma dimensão prescritiva que é muito difícil de controlar. Sob esse ponto de vista, o sociólogo ou o especialista em ciências da educação não tem nenhuma autoridade particular para impor “com autoridade” o nome que se deve dar ao docente (funcionário, apóstolo, profissional, trabalhador). Nesse sentido, “a condição docente” é um termo cômodo, na medida em que não toma posição nessa luta. O mesmo se poderia dizer da expressão “O ofício do docente”. Ambos, devido a que de modo geral não são usados na luta atual pela definição desse coletivo, são úteis para expressar certa prudência na hora de denominar a realidade que se quer analisar.
Em outras palavras, como a docência (como qualquer outro objeto social) não existe como essência ou substância cuja verdade deva ser descoberta, mas como construção social e histórica, o que a pesquisa educativa sim pode e deve fazer é reconstruir a lógica das lutas pela definição desse fenômeno social. Sabemos que os nomes não são um simples reflexo que “acrescenta realidade” à coisa nomeada. Por sua vez, os objetos sociais são polissêmicos, ou seja, podem receber distintas denominações e, portanto, terminam sendo coisas diferentes. Assim, não é o mesmo um docente que vive seu trabalho como uma “vocação” (no sentido forte do termo) que um docente “profissional” ou “funcionário”.
Essas diferentes construções têm uma história, encarnam-se em atores com interesses e recursos específicos. As denominações não se justapõem, mas se contradizem e, inclusive, são matéria de conflito. Não é uma casualidade que a maioria dos sindicatos defenda o conceito de docente como “trabalhador” (ou como “proletário” ou formando parte do proletariado) e que muitos funcionários e tecnocratas dos ministérios de educação falem a linguagem da “profissionalização” dos docentes (que não seriam profissionais, mas deveriam ser). Mas também é possível que alguns aceitem uma síntese (“trabalhador profissional”) ou bem insistam na velha ideia da atividade “vocacional”, à qual alguém se dedica de forma desinteressada, sem maior motivação que a satisfação de fazer o que um docente deve fazer.
Como se pode observar, cada uma dessas construções tem efeitos políticos concretos no campo da formação inicial e permanente de docentes, no campo das condições de trabalho e inclusive no campo da avaliação e determinação do sistema de prêmios e recompensas correspondente a esse “ofício”. Por isso, é de particular interesse analisar, a partir de uma perspectiva histórica (a “condição docente” tem uma longa história (vide TENTI FANFANI, 1999) que ainda pesa nas coisas e nas consciências) e relacional, o conjunto de atores, interesses, relações de força e estratégias que se desdobram nessa luta permanente pela definição do ofício.
Porém essa luta não se dá no vazio, senão em um espaço estruturado. Duas “novidades” caracterizam o contexto em que se desenvolvem as práticas laborais dos docentes e que afetam seu sentido e identidade coletiva. Uma está relacionada com a tendência a incorporar as novas tecnologias da comunicação e da informação (TIC’s) na sala de aula. As tecnologias obrigam a uma profunda redefinição das práticas e modos de fazer as coisas em sala e, portanto, dos processos de formação docente. A outra transformação se relaciona com a crise do modelo burocrático que estruturou em seus princípios a organização dos sistemas educativos e do trabalho dos docentes. A introdução do “novo espírito” do capitalismo no sistema e nas instituições educativas modifica profundamente as condições de trabalho nas instituições e nas salas. A introdução de critérios de concorrência (entre instituições, agentes, etc.), produtividade (em termos de rendimento das aprendizagens), avaliação, competências, autonomia das instituições, tensões entre desregulação e pressão por resultados, etc. conformam um cenário que coloca novas condições ao processo de construção da identidade do coletivo docente.
É evidente que tanto as “novidades” introduzidas pelo desenvolvimento de novos dispositivos de ensino/aprendizagem (como resultado da introdução das novas tecnologias) como a nova lógica de regulação afetam o trabalho e a identidade dos docentes. Já não são, estritamente falando, aquela velha mistura de “missionários ou apóstolos da cultura” e funcionários públicos, mas profissionais dotados dos conhecimentos científicos e técnicos necessários para maximizar o rendimento em matéria de aprendizagem. A pressão pelos resultados medidos segundo provas estandardizadas tenderá a diluir a mística da função pública tradicional, fortemente estruturada ao redor da ideologia da “vocação”. O salário do docente não dependerá só de sua antiguidade ou qualificação, mas de sua capacidade de lograr certos resultados de aprendizagem mensuráveis em seus alunos. Os resultados serão muito mais importantes do que os processos ou os efeitos de seu trabalho sobre outras dimensões de seus alunos (capacidade de mobilizar seu interesse e/ou curiosidade, criatividade, atitudes solidárias, etc.).
Esse novo mecanismo de regulação gera, de modo geral, uma oposição por parte das organizações sindicais docentes. Muitas delas questionam a ideologia da “profissionalização” dos docentes e os efeitos da desregulação sobre sua própria autonomia profissional na medida em que estão submetidos à nova tirania das provas estandardizadas. Algumas inclusive chegam a afirmar que as consequências do “neoliberalismo” educativo são a “proletarização” do trabalho docente, na medida em que implica uma perda de controle e autonomia dos docentes sobre o sentido e conteúdo de seu trabalho nos estabelecimentos. Em síntese, a luta permanente pela construção social do ofício do professor se desenvolve em um novo contexto onde intervêm atores coletivos (sindicatos docentes, especialistas, altos funcionários e responsáveis políticos dos ministérios de educação, intelectuais, partidos políticos, interesses dos fornecedores privados de educação, etc.) que lutam pelo controle do trabalho docente. As distintas posições e relações de força dos atores se correspondem a visões e formas diferentes de definir o sentido da educação e do trabalho dos profissionais da educação. Para alguns, estes são nada mais que especialistas em ensino-aprendizagem e sua maior responsabilidade consiste em fazer que seus alunos alcancem os melhores resultados nas provas nacionais de avaliação de conhecimentos. Nessa perspetiva, o docente é um profissional técnico, ou seja, possuidor de um saber sobre os meios de ensino e aprendizagem. Em outra perspectiva, os docentes seriam profissionais críticos, ou seja, construtores de subjetividades conforme a projetos políticos relacionados com a construção de uma sociedade mais justa, livre e democrática. Em sentido estrito, seriam trabalhadores intelectuais capazes de cooperar na distribuição deste capital estratégico que são o conhecimento e a cultura nas novas gerações.
Emilio Tenti Fanfani
Bibliografia:
TENTI FANFANI, E. El arte del buen maestro: ensayos sobre el oficio del maestro y el Estado educador:ensayo sobre su génesis y desarrollo en México. Mexico: Pax-México, 1999.
TENTI FANFANI, E. La condición docente: análisis comparado de la Argentina, Brasil, Perú y Uruguay. Buenos Aires: Siglo XXI, 2005.
In: GESTRADO
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