Ninguém precisa de lhe fazer um desenho. Vítor sabe. Tem abusado da paciência dos professores e mais ainda da paciência da mãe, agora que o pai não está por perto. “O meu pai acerta-me o passo, se eu me porto mal e tudo. Ele não facilita tanto as coisas como a minha mãe.”
A assistente social Ana Sofia Lopes, que trabalha no gabinete de apoio à família na EB 2/3 de Cinfães, até ficou de boca aberta ao ouvi-lo. Apetecia-lhe gravar a conversa para mostrar à mãe. “Ele falou o que é verdade mas que a maior parte das vezes tem dificuldade em assumir”, comentará – no fim, só no fim, não vão as suas palavras influenciar o discurso do rapaz, alto para os seus 12 anos.
O fluxo migratório entra na escola de muitas maneiras. Há décadas que é assim neste concelho do interior de Portugal, limite do distrito de Viseu, o Douro verde, antes de se tornar vinhateiro. Sem indústria, agarrado ao que resta da agricultura e da criação de gado, presta serviços, exporta gente. Não vai há muito, os homens saíam em carrinhas no domingo à noite e regressavam na sexta à noite. Andavam a construir Portugal e, nalguns casos, Espanha. A crise, primeiro em Portugal, depois em Espanha, paralisou o sector. Avançaram para a Suíça, para a Alemanha, para Angola, para o Brasil…
Técnico de análise de solos, o pai de Vítor vivia naquele vai-e-vem. Ficava a semana fora, mas ao fim-de-semana estava em casa com ele, com o irmão e com a mãe, que trabalha num concelho vizinho. “Tínhamos uma vida fantástica”, dirá ela, Manuela, daqui a pouco. “À sexta-feira, quando ele vinha, sentávamo-nos na varanda para vê-lo chegar. Enchíamos a casa de balões.” Faliu a empresa que empregava o pai. Com a ida para Angola, a ausência dele já não se podia disfarçar. De repente, só se podia juntar à mulher e aos filhos no Natal e no Verão. O comportamento de Vítor alterou-se. Até parece que anda a testar os limites da paciência alheia. Por vezes não faz os deveres, atrasa-se, não traz o material escolar, tarda o início das aulas. Não é violento. Prega partidas. Ri-se. Um dia, por exemplo, trouxe um perfume e empestou a sala de aula.
O fluxo migratório poupa muitas crianças às agruras da pobreza, mas faz os seus estragos. Isso vê-se no pátio desta escola, onde a leveza da música substituiu o tradicional grito estridente da campainha e há sempre um cesto de fruta ao alcance de quem tem fome ou vontade de comer.
Para compensar a ausência, há pais que parecem querer dar o mundo inteiro aos filhos – roupas de marca, telemóveis de última geração, jogos electrónicos. Dir-se-ia que outros lhes tiraram, se não o chão, pelo menos o tapete. A distância implodiu casamentos. Alguns homens que refizeram vida lá fora mal falam com as suas crianças – nalguns casos até lhes ficam com o abono. São estas famílias, de repente sem rendimentos, por vezes com empréstimos, que mais preocupam o director da escola, António Pereira. Mesmo alunos com forte vínculo afectivo e estabilidade financeira, como Vítor, não ficam imunes à ausência paterna.
A saída de portugueses do território nacional está longe de ser recente. “Remonta aos Descobrimentos. A presença-ausência dos pais faz parte da cultura portuguesa”, enfatiza Fabrizia Raguso, professora auxiliar da Universidade Católica Portuguesa especializada em psicologia da família. “Está tão enraizada que é encarada como normal”. Talvez por isso tenha merecido tão pouca atenção do mundo académico. Ninguém, na Europa, tem discutido tanto este assunto como a Roménia. Desde a queda do regime comunista, em 1989, perdeu 3,5 milhões de habitantes. Este êxodo, acentuado com a entrada na União Europeia, criou aquilo a que alguns sociólogos chamam “os órfãos dos morangos”, numa referência a uma das principais ocupações dos romenos no estrangeiro, a agricultura. Um estudo da Fundação Soros indica que as crianças romenas que ficaram para trás – muitas ao cuidado de avós nem sempre preparados para as exigências do mundo moderno – são mais propensas a ter baixo aproveitamento escolar, a consumir tabaco e álcool, a cometer pequenos crimes. No extremo oposto, algumas tentam, a todo o custo, ser os melhores alunos da turma, na esperança de fazer voltar os pais.
Supõem-se que o fenómeno assuma especial gravidade na Roménia, país predominantemente rural, no qual os laços familiares tendem a ser estreitíssimos, mas não será de descurar noutras geografias, como Portugal. “Há sempre um mal-estar”, sublinha a mesma investigadora. A maior parte das crianças, diz, não consegue compreender a razão pela qual o pai, a mãe ou ambos abalam. Muitos adultos tendem a esconder tudo o que as pode perturbar. As crianças são apanhadas de surpresa. Nalgumas instala-se um sentimento de abandono, de rejeição, de culpa que coloca em risco a sua capacidade futura de estabelecer vínculos afectivos. Fundamental, avisa Fabrizia Raguso, é partilhar com elas a situação familiar e envolvê-las no processo de decisão.
Não será o mesmo que nos anos 1960 e 70. Até pela facilidade de circulação, agora as famílias mais depressa levam as crianças. Havia uma semana que dali, da EB 2/3 de Cinfães, partira um rapaz para a Bélgica. O pai já lá estava. A mãe seguira-o com os filhos. O director da escola tentou em vão convencê-la a deixar o rapaz, pelo menos, terminar o ano lectivo. “Tem 16 anos e fica a 3 meses de terminar o 9.º ano”, insurgiu-se. “Fica sem nada! Fica com o 6.º ano. Está em falta. Para todos os efeitos está em abandono. ”António Pereira ainda não fez as contas às saídas deste ano lectivo, mas lembra-se bem das do anterior: a emigração levou-lhe 12 alunos. Eram mais novos do que aquele. Partiram com a promessa parental de que seriam matriculados noutra escola. Aqui, na EB 2/3 de Cinfães, ninguém controla a promessa. Resta, volvidos oito dias, avisar a Comissão de Protecção de Crianças e Jovens.
O rapaz que partiu para a Bélgica não estava contente. Essa é, pelo menos, a ideia de Avelino, seu colega de turma. “Se o meu pai dissesse para irmos para o Brasil, eu não ia”, diz ele. A minha mãe não sei, mas eu não ia. Pelo menos até acabar a escola. Até ter o 12.º. Vejo na escola o meu futuro.”
Também está a aprender a lidar com a ausência do pai este rapaz de 14 anos e raciocínio ágil. O pai acabara a obra em Espanha. Só estava há um mês em casa, talvez nem isso. Uma noite, ao jantar, anunciou que o patrão lhe propusera ida para o Brasil. “Ele disse que ia aceitar. Percebi que ia vê-lo de mais em mais tempo. Não fiquei contente. Quem pode ficar contente com uma notícia destas?” Não é que Avelino não perceba o porquê desta partida do pai para um país para onde o avô já emigrara. “Ele tem de ganhar a vida. Tem de emigrar. É assim que a maioria dos homens faz.” Mesmo assim não consegue evitar uma certa angústia. E sabe que anda a abusar da paciência alheia, como Vítor.
Qualquer asneira de Vítor num instante chega aos ouvidos da mãe, professora, atenta e a residir a uns minutos da escola. Ela chama-lhe a atenção: “Por que fizeste isso?” Quando ela se zanga, ele grita: “Quero o meu pai! Eu quero aqui o meu pai!” E ela percebe naquelas palavras um vazio, uma saudade.
Manuela ainda se lembra de quando o pai dela emigrou, tinha ela a idade de Vítor. Mas naquele tempo os papéis eram mais rígidos – por tradição as mães davam colo, os pais proviam ao sustento, exerciam autoridade sobre os filhos, dos quais mantinham até alguma distância afectiva. Não era como hoje, em que, correndo bem, as mães têm empregos e os pais trocam fraldas. Vítor estava habituado às boas notas. No primeiro trimestre deste ano lectivo teve sete negativas. “Era muito agarrado ao pai”, dirá a mãe. “O pai ir embora foi uma coisa… também tem a ver com a idade. Ele tinha onze anos e pouco quando o pai foi para Angola…” Tem necessidade de experimentar, de explorar, de se afirmar. E ela acredita que esta passagem da família para o mundo seria mais suave se o pai aqui estivesse. “Nunca lhe ralha. Tudo o que o pai diz, ele aceita.”
A emigração provoca alterações na estrutura familiar, nota Joana Cristina Cardoso Soares, que fez, na Universidade Católica, um mestrado intitulado “Emigração paterna e representações mentais de família: estudo exploratório com filhos jovens adultos”.
“Há nos filhos, por um lado, a negação do sofrimento, a valorização do sacrifício do pai, a tentativa de transmitir a ideia de que a família é normal. E, por outro lado, a importância da ausência do pai”, diz Fabrizia Raguso, que a orientou. “O pai é uma figura presente pela ausência”, explica. “A sua figura é muito idealizada. Fica associado a experiências lúdicas: vem nas férias, traz prendas. Ele chega e a vida assume um ritmo diferente. Mais conflituosa é a relação com a mãe, que tem de assumir o duplo papel.”
Os telemóveis e a Internet ajudam. A família de Vítor que o diga. Havendo rede no Huambo, onde ele está, o contacto é diário. Havendo tensão, o rapaz até pode antecipar a conversa entre os pais. Telefona-lhe a prepará-lo: “Se a mãe te disser que me portei mal, foi só um bocadinho.” E ela por vezes nem toca no assunto, para não o inquietar, para não lhe tornar a ausência ainda mais dura. O fundamental, parece-lhe, é que não se percam uns dos outros, apesar das distâncias.
In: Público
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