Uma equipa de pediatras do Núcleo Hospitalar de Apoio a Crianças e Jovens em Risco (NHACJR) do Hospital Fernando Fonseca, antigo Amadora Sintra, em Lisboa, publicou um guia para ajudar os pais a lidar com a presença permanente dos filhos em casa. “É normal que se sinta stressado e sobrecarregado”, diz o documento, que foi criado menos por causa dos pais e mais pelas crianças. “Estamos muito preocupados com as situações de maus tratos que possam existir nesta fase de quarentena e que acabam por ser ignoradas”, alertam os profissionais.
O guia é uma adaptação do “Tips for parenting during the coronavirus (COVID-19) outbreak”, lançado pela Organização Mundial da Saúde, que se divide em seis categorias. O tempo de qualidade entre pais e filhos, a manutenção de uma atitude positiva, as rotinas, que nesta fase não devem desaparecer, a reação aos maus comportamentos das crianças — “todas se portam mal alguma vez (...) é normal quando estão cansadas, com fome, com medo” —, a calma que é preciso manter e as conversas sobre a pandemia ou sobre qualquer outro tema que preocupe as crianças.
Nem todas as recomendações se aplicam da mesma forma a todas as famílias. Carlos Escobar, autor do guia adaptado para famílias portuguesas e membro da secção de Pediatria Social da Sociedade Portuguesa de Pediatria (SPP), lembra que “as nossas famílias são muito variadas”. Das monoparentais às que contam com a presença permanente dos avós, há agora as diferenças entre quem está em quarentena a trabalhar e quem ficou sem ocupação. Para o pediatra, as duas situações são de risco potencial. “Estar num apartamento com três crianças e não ter nada para fazer pode ser muito complicado. Mas assumir que se pode fazer teletrabalho com a presença de filhos, muitos menores, torna difícil criar espaço de separação entre obrigações profissionais e família.” E a distinção, garante, é fundamental.
A preocupação está para lá das “famílias sinalizadas” ou com histórico de maus tratos. No hospital, ainda conhecido por Amadora Sintra, há um histórico registado pelo NHACJR que sinalizou 191 casos só em 2016. A maioria foi contra meninas, a maioria por maus tratos físicos. Seguiu-se o abuso sexual. Mas é também de abuso emocional que mais se fala agora. Escobar aponta à manutenção da “sanidade mental possível” e de uma preparação estendida no prazo. “A situação é incerta e pode demorar semanas. É muito importante criar partilhas.” Marta Ezequiel lembra que não só é o que acontece agora, é o que aí vem. “As famílias que o hospital abrange têm muitas vezes empregos precários. Ainda vamos passar por novas situações de risco, e até de fome”, avisa a pediatra do NHACJR.
O serviço de Urgência Pediátrica do hospital está a funcionar com horário reduzido, como noutros hospitais, e o fim das consultas não urgentes veio acrescentar uma camada de risco. “Nas consultas nós conseguimos perceber sinais de alarme. Quando uma criança tem um traumatismo e a descrição não bate certo, por exemplo. Mas agora os casos deixam de ser referenciados”, explica Marta Ezequiel. Na mesma videoconferência com o Expresso, Carlos Escobar acrescenta: “A escola também é um grande sinalizador dessas situações, e agora não existe. As crianças às vezes confiam nos professores, nos auxiliares. Agora não há forma de lhes chegar.” De mãos atadas, dizem, a solução “é evitar que essas situações existam” e que os pediatras se façam, por agora, menos necessários.
Para o fazer, a equipa aposta em espalhar o guia por órgãos de comunicação social, redes sociais e passa a palavra. “Há ‘n’ grupos de mães no Facebook, onde se partilham dicas e conselhos”, lembra Marta Ezequiel, também ela mãe de dois filhos que, por ter tido sintomas, teve de deixar temporariamente o marido “sozinho” com as crianças. “É que nem estamos a pensar nas famílias com alguém infetado em casa. Porque aí a logística muda completamente, é uma pessoa a viver à parte. Mas é uma pessoa que tem também que ser apoiada.” A SPP tem também um guia com cuidados domiciliários a ter com uma criança com covid-19. E a Ordem dos Psicólogos lançou esta sexta-feira um “kit de sobrevivência para pais”.
O guia da NHACJR apresenta 21 dicas, divididas pelas categorias acima citadas, e vai repetindo uma mensagem: ninguém está sozinho. “Estamos num período incerto, mas não é a única pessoa nesta situação.” “A quebra nas rotinas é difícil para si, mas também é difícil para as crianças e adolescentes.” Seja com os filhos ou com outros pais e amigos, uma mensagem para “a sanidade mental possível”: “Não guarde segredo.”
Fonte: Expresso por indicação de Livresco
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