Há três semanas que os vemos todos os dias às 12.30 a traduzir para língua gestual portuguesa o que é dito na conferência de imprensa do Ministério da Saúde e da Direção-Geral da Saúde e repetido ao longo do dia em todos os espaços de informação televisivos. Luís Oriola e Sofia Figueiredo são técnicos superiores do Instituto Nacional para a Reabilitação, mas por estes dias têm trabalhado sobretudo na tradução das comunicações oficiais, do Ministério da Saúde e de outros organismos do governo ou da Presidência da República.
Luís tem 38 anos e, com vários familiares surdos, sempre foi elo de ligação entre surdos e ouvintes. Em 2009, fez da missão profissão. Sofia Figueiredo prefere não falar de si, mas diz que a língua gestual portuguesa foi aprendida, já em adulta, com o objetivo de fazer a ponte entre a comunidade surda e a ouvinte. Uma missão que no seu caso não teve razões familiares.
Não estão a trabalhar mais, simplesmente o seu trabalho ganhou uma maior visibilidade, que as pessoas surdas reivindicam há muito tempo. Não visibilidade no sentido de protagonismo, visibilidade no sentido de serem vistos por quem não ouve, porque só assim é garantido o acesso à informação.
"Há muito por fazer na acessibilidade para as pessoas surdas, a todos os níveis. É curioso que muita gente nos pergunta se estamos a trabalhar mais ou se estamos mais expostos a riscos. Não, somos dois a partilhar a tarefa de uma conferência de imprensa por dia, que depois passa várias vezes ao dia em todas as televisões, mas de resto estamos em casa, resguardados, com a família, a tomar conta dos filhos, como a maioria dos portugueses, e em regime de teletrabalho", diz Luís Oriola.
Sofia Figueiredo confirma e frisa a importância de dar visibilidade à língua gestual portuguesa. "É fundamental que a informação chegue às pessoas surdas, para se protegerem e protegerem os outros. É preciso ouvir a ERC e a Federação Portuguesa das Associações de Surdos, que recomendam que se há um intérprete no local este deve ser captado e não só em janela. Há pessoas que não têm internet, não podem ver as comunicações escritas, só têm acesso à informação através da televisão. Estou a pensar nas prisões, nas casas de abrigo, nas vítimas de violência doméstica, nos lares de crianças e jovens em risco, só para dar alguns exemplos. A televisão é o meio mais fácil de chegar a toda a gente e continua a haver operadores de câmara que se esquecem de captar o intérprete de língua gestual portuguesa, não percebendo a necessidade de acesso à informação para que estas pessoas se protejam e protejam os outros", diz.
Luís Oriola, que chama a atenção para a importância de além da tradução para Língua Gestual Portuguesa, existir também legendagem, acredita que a maior exposição que estão a ter os intérpretes poderá levar a uma maior sensibilidade da comunicação social, desde as direções aos operadores de câmara que estão no terreno.
"Quando fecham o plano em quem está a falar, tornam o nosso trabalho um desperdício de tempo. Uns fecham, outros abrem, outros nem querem saber e enquanto num canal aparece o intérprete, noutro pode não aparecer. Neste momento, não está a acontecer tanto, é uma sensibilização que nós próprios temos que ir fazendo e já tem dado origem a discussões, mas noto que cada vez há mais compreensão e aceitação da necessidade de tornar visível a tradução para Língua Gestual Portuguesa".
Informar da gravidade da situação
É isso que Alexandra Ramos, 44 anos, que trabalha na SIC há 15, também tem notado. O seu rosto tornou-se mais visível quando saiu da janela e se sentou ao lado de Ricardo Araújo Pereira, no programa Isto É Gozar Com Quem Trabalha, para traduzir para Língua Gestual Portuguesa uma série de impropérios que o humorista entendeu dirigir ao novo coronavírus.
Alexandra, que trabalha também no canal Parlamento, traduzia na SIC sobretudo os programas de entretenimento das manhãs e das tardes. Informação só ao fim de semana. Mas desde que a pandemia de covid-19 se abateu sobre o mundo, passou a estar todos os dias, em alternância com uma colega, no Jornal da Uma e no Jornal da Noite daquele canal de televisão.
Para ela, ser intérprete de Língua Gestual Portuguesa foi um percurso natural porque os pais são ambos surdos e o pai sempre esteve ativamente envolvido com diversas associações de surdos nacionais. "Na verdade, eu queria era ser hospedeira, mas não tive alternativa", brinca.
É, no entanto, com muita seriedade que partilha das preocupações dos colegas Sofia e Luís. "É muito importante para a comunidade surda ter acesso à informação, para perceber a gravidade da situação, quais são os sintomas da doença, quais são as recomendações da Direção-Geral de Saúde, quando e onde procurar ajuda, o que têm que fazer para se proteger e proteger os seus", diz, lembrando que seria fundamental alargar a acessibilidade para pessoas surdas nos hospitais, centros de saúde, na linha da Saúde 24 e na generalidade dos serviços públicos.
Uma nova palavra
Em relação à introdução de novas palavras, como covid-19, na língua gestual portuguesa, Alexandra explica que, como todas as línguas, esta é dinâmica e tem a vantagem de a comunidade surda ser muito ativa nas redes sociais e partilhar informação entre si.
"Como é que se diz covid-19? Não é fácil explicar assim, mas vou tentar. A mão esquerda com o punho fechado, mão direita com os dedos abertos por cima do punho e roda para o lado direito, seguido de outro gesto que significa bicho. Vai ao encontro da imagem de coronavírus - a bola com os espinhos -, soletramos e fazemos o gesto e as pessoas passam a saber que significa novo coronavírus."
Informação é uma área de que Alexandra sempre gostou, daí o trabalho no canal Parlamento ser para si gratificante, mas estes tempos, confessa, não têm sido fáceis. "Uma coisa é fazer informação com diversidade de temas, outra é o momento que atravessamos, em que é tudo sobre o mesmo tema, e um tema pesado, com descrição de situações dramáticas e números de mortos. Temos de ter a capacidade de não chorar, de não nos desmancharmos quando estamos a traduzir para que a mensagem seja clara para as pessoas e isso pode ser extenuante física e, sobretudo, psicologicamente." (...)
Fonte: DN
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