Quando são retiradas de surpresa à família, as crianças e jovens em perigo não têm tempo para se despedir dos pais. Nem de ninguém. A retirada é decidida quando há “indícios claros de perigo”. E é planeada em segredo, em caso de risco de fuga. Acontece mesmo em situações de retirada consentida, por pais que depois rejeitam a ideia de se separarem dos filhos. Quando são retiradas de surpresa à família, as crianças e jovens em perigo não têm tempo para se despedir dos pais. Nem de ninguém. A retirada é decidida quando há “indícios claros de perigo”. E é planeada em segredo, em caso de risco de fuga. Acontece mesmo em situações de retirada consentida, por pais que depois rejeitam a ideia de se separarem dos filhos.
Os pais de António, Sandra e Susana declararam-se incapazes de os criar por motivo de doença de ambos e falta de condições. “Mas apesar de concordarem com a retirada, ficaram muito assustados quando receberam o despacho” da decisão, conta Vânia Pereira, psicóloga e directora do Lar Nossa Senhora de Fátima, de infância e juventude, que acolheu as três crianças em Reguengos de Monsaraz. “Com a ideia de perder os filhos, os pais estiveram desaparecidos com eles durante um mês e meio. Não se queriam separar dos miúdos. Esconderam-se na casa de um familiar.” Foi em 2009. “Mais tarde, o pai, arrependido, foi falar com a técnica da Segurança Social. Mas levou muito tempo a aceitar a situação.” E António? Os pais deixaram-nos aqui por “dificuldades”, diz o rapaz de 12 anos. É bom aluno e tem planos grandiosos para o futuro – ser médico-cirurgião. Mas para ele, a casa dos pais será sempre “mais casa do que aqui”.
Nalguns casos, o corte faz-se sem pré-aviso. Aí, o carro da Polícia de Segurança Pública (PSP) ou a equipa da Segurança Social aparecem na escola ou em casa para levar a criança – ou as crianças, quando há irmãos sob uma mesma medida de protecção decidida pelo Tribunal de Família e Menores, se a retirada não é consentida pelos pais (o que acontece na maior parte dos casos). A partir desse momento, as crianças ainda não sabem – ou talvez pressintam – que talvez nunca mais regressem à família. Das crianças que viveram e saíram deste lar em Reguengos desde 2008, apenas um quinto voltou para a família. São dados de Abril de 2014.
Ainda entre as crianças e jovens que passaram por aqui nos últimos seis anos, 42% ficaram mais de 10 anos e 55% mais de sete. E embora uma importante fatia – 33% – tenha permanecido menos de três anos, só 5% ficaram menos de um ano. Do conjunto, apenas 7% foram para famílias adoptivas.
Limitar ao mínimo o tempo na instituição e pensar um projecto de vida para estas crianças serão alguns dos temas em debate na conferência Jovens em Acolhimento Institucional que esta tarde se realiza no Auditório 2 da Fundação Calouste Gulbenkian em Lisboa e na qual participa a procuradora-geral da República, Joana Marques Vidal.
No encontro, olham-se as propostas – para melhorar as perspectivas de inserção e de vida das crianças institucionalizadas – apresentadas por quatro instituições. Foram seleccionadas no âmbito de um projecto da Gulbenkian pelo contributo de uma possível aplicação, a nível nacional, das suas experiências: a Oficina de São José, em Braga, a Associação Vila Nova, em Vila Real, o centro de acolhimento temporário Casa do Canto, em Ansião, que centrou o seu projecto na tentativa de reconstruir os laços familiares; e o Lar de Nossa Senhora de Fátima, em Reguengos de Monsaraz.
“Chegam em choque”
“Quando aqui chegam, vêm assustados. Alguns vêm o caminho todo a chorar, ficam calados ou continuam a chorar. Outros nem conseguem verter lágrimas, estão em estado de choque, principalmente quando são crianças retiradas de surpresa. A maioria sabe por que aqui está”, diz Vânia Pereira, que dirige esta instituição que, enquanto Lar de Infância e Juventude se distingue dos Centros de Acolhimento Temporário (CAT), pelo tempo previsto de permanência.
Os CAT recebem bebés e crianças mais novas, na transição para outro lar, para a adopção ou retorno à família biológica e têm um tempo de permanência previsto inferior a seis meses –, mas, na maioria dos casos, prolonga-se por vários anos. Os lares de infância e juventude são habitualmente para crianças a partir dos 12 anos, e vistos como opção quando se esgotaram todos os tipos de intervenção para as proteger.
“Quando vêm para aqui, normalmente, é porque já se sabe que não vai haver retorno à família. Pelo menos, para breve”, explica Vânia Pereira que acolhe nesta instituição crianças mais pequenas do que o previsto para não ficarem separadas dos irmãos.
Como Sara e Leonel, tirados de casa sem aviso e sem nada porque numa situação extrema e depois acolhidos neste lar de infância e juventude em Reguengos de Monsaraz, quando ele tinha quatro anos e a irmã ia fazer 11. Sara sabia que um dia seriam levados de casa – só não sabia quando.
Acabou por ser quase em véspera de Natal, no dia 23 de Dezembro de 2011. O tribunal considerou que a humilhação e o mau trato sobre Sara e a negligência sobre ambos punham em perigo o bem-estar, saúde e desenvolvimento das duas crianças, hoje com 13 e seis anos.
Na casa onde viviam com os pais em Évora tornara-se habitual serem deixados sozinhos durante o dia. Era Sara quem cuidava da casa e do irmão bebé, quando Leonel, com dois e três anos, ainda acordava de noite para mudar a fralda e beber o biberão. Mais difícil de apagar da memória será a violência que Sara viveu em segredo por medo do que poderia acontecer se contasse o que se passava em casa. Poderia ela proteger o irmão? Seria ela castigada por falar? Seriam os pais castigados, levados para sempre, presos?
Os pais estão presos, depois de condenados em Fevereiro passado, por violência sobre Sara e Marlene, a irmã do meio, hoje com dez anos, que vive num lar em Vila Viçosa e que foi retirada de urgência de casa, antes dos irmãos, em Janeiro de 2011. Para Sara e Leonel, também o contacto com a irmã seria prejudicial pelos “danos” sofridos por Marlene que a transformaram como pessoa, explica a psicóloga Vânia Pereira.
“Na maioria dos casos, as crianças lembram-se de quase tudo. Mas muitas têm retalhos apenas, não uma narrativa”, acrescenta. “Tentamos perceber do que se recordam sem lhes dar lembranças que não têm, que recalcaram. Por vezes há coisas que é preferível não saberem.”
Fechados para seu próprio bem
A porta sempre trancada do lar tem a seu lado um sistema de controlo das entradas e saídas, com um código apenas conhecido das responsáveis. É dentro destas paredes que as 23 crianças e jovens aqui institucionalizadas recriam o seu mundo. Fechadas, para seu bem. No caso de Sara e Leonel, os pais ficaram impedidos de visitar os filhos pelos riscos emocionais que esse contacto poderia constituir. Entre eles, o risco de reviver o trauma.
Em casa, Marlene era humilhada por palavras e castigada com violência. Os gritos ouviam-se para lá do quarto onde era fechada, por vezes no escuro – até um dia de Janeiro de 2011, quando as marcas no corpo lançaram o alarme na escola. Imediatamente foi retirada aos pais, passando a violência a centrar-se em Sara, retirada meses depois com o irmão. Conta Vânia Pereira que Sara já passou da tentativa de “dar um sentido” ao que de pior lhe aconteceu, questionando a possibilidade de ser dela também parte da culpa, ao tormento da dúvida: “O que me vai acontecer agora que não tenho ninguém para cuidar de mim?”
O estigma continua presente e é preciso pensar a vida estes jovens na comunidade, diz Maria João Leote, investigadora do CESNova (Centro de Estudos de Sociologia da Universidade Nova de Lisboa) que integra a equipa de acompanhamento do projecto inserido no programa “Crianças e Jovens em Risco” da Gulbenkian, com coordenação cientifica do psiquiatra Daniel Sampaio, e que estará em discussão no encontro desta quinta-feira.
Depois da missão de levar as instituições a cumprir as convenções internacionais dos direitos da criança, “o objectivo agora é que a instituição esteja presente o menor tempo possível na vida da criança e que seja pensado um projecto futuro de autonomização plenamente integrado na comunidade”, completa a socióloga.
O número de crianças acompanhadas pelas comissões tem aumentado (71 mil casos em 2013), de acordo com o relatório anual da Comissão Nacional de Protecção de Crianças e Jovens em Risco relativo ao ano passado, em que o grupo mais representado passou a ser o dos jovens entre os 15 e os 18 anos.
Esse maior peso no conjunto – também visível no lar de Reguengos, onde quase metade (44%) dos jovens acolhidos em Abril deste ano têm entre 15 e 18 anos – explica-se pelo arrastar da situação das crianças que crescem nas instituições, mas também por serem mais notadas e sinalizadas as situações de perigo dos jovens agora que a escolaridade obrigatória passou para os 18 anos.
Pelo segundo ano consecutivo, em 2013, a principal razão foi a violência ou a exposição a comportamentos violentos, como aconteceu com Sara, Leonel e Marlene, em 2011 – o ano da sua retirada.
Primeiros passos decisivos
Quando retiradas, as crianças são acompanhadas ao lar de infância e juventude ou ao centro de acolhimento temporário por um técnico da segurança social ou da Comissão de Protecção de Crianças e Jovens em Risco (CPCJR), quando houve acordo. Por vezes, chegam sem nada, e só mais tarde um familiar ou os próprios pais trazem a roupa.
Quando aqui chegam, as crianças têm uma primeira entrevista de acolhimento, uma primeira refeição, um primeiro banho – passos decisivos para, aos poucos, aceitarem ter uma casa sem uma família.
Procuram um sentido, resguardam-se na fantasia e na idealização dos pais. Quando o caso é entregue ao tribunal, na ausência de acordo entre os pais e a comissão de protecção, a partir dos 12 anos, a criança deve ser ouvida. Habitualmente, porém, não é questionada sobre o desejo de ficar ou não com os pais. “Normalmente e apesar de tudo, todas elas querem ficar com os pais. Não aceitam vir para uma instituição”, nota Vânia Pereira.
Esta opção coloca-se quando estão esgotadas todas as intervenções de protecção junto da família ou tentando, prioritariamente, manter a criança em meio natural de vida. Num primeiro momento, tenta-se a medida de apoios dos pais – com apoio psicológico, educação parental ou visitas a casa – e esta pode ser suficiente. Se não o for, pode aplicar-se uma medida de apoio junto de outro familiar. Porém, não havendo isto, passa-se para a colocação em acolhimento familiar ou institucional, entrega a pessoa idónea (que pode ser uma amiga, uma madrinha) ou inicia-se a medida de adopção.
Sara e Leonel estão ainda juntos depois de terem sido arrancados de casa quando tinham dez e quatro anos. No átrio do lar, quando se revêem ao final do dia, depois da escola e do infantário, brilha o olhar de ambos, inseparáveis. E assim ficariam no caso, improvável, de aparecer uma família que aceitasse adoptar os dois irmãos.
Sara sabe que existe uma forte probabilidade de o pequenino, hoje com seis anos, ser adoptado por uma família e de ela, com 12, não o ser. O melhor para o irmão será mais um corte para ela.
Os nomes nesta reportagem são fictícios
In: Público por indicação de Livresco
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