O número de menores acompanhados pelas comissões de proteção de crianças e jovens (CPCJ) voltou a crescer. Foram 71.500 ao longo do ano passado. Acentuou-se a tendência de aumento dos relatos relacionados com a exposição a comportamentos que podem pôr em causa o seu desenvolvimento e bem-estar — na maioria dos casos, a cenas de violência familiar nas quais não são o alvo direto. Esta foi mesmo a situação mais presente nos novos processos instaurados em 2013.
São dados do novo Relatório Anual da Avaliação da Actividade das CPCJ que é hoje apresentado, em Setúbal, num encontro que reúne representantes de muitas das cerca de 300 comissões de proteção que existem no país.
Os grandes números do documento são estes: no ano passado, as CPCJ lidaram com cerca de 71.567 crianças (mais 2560 do que em 2012). Uma parte dos processos (perto de 34 mil) vinha do ano anterior e 30.344 foram instaurados ao longo do ano (28.498 novos e 1846 que resultaram de transferências entre comissões de protecção). A 31 de dezembro, continuavam ativos mais de 37 mil (ver infografia).
“Não é um número muito significativo, mas há um aumento das sinalizações”, resume Armando Leandro, que desde 2005 preside à Comissão Nacional de Protecção de Crianças e Jovens em Risco.
O juiz conselheiro jubilado do Supremo Tribunal de Justiça destaca a questão da “exposição à violência doméstica vicariante”, ou seja, àquela que não é dirigida diretamente à criança, “mas que é tão prejudicial como se fosse”. Ela representa 94,5% dos 8600 casos de exposição a comportamentos que podem pôr em causa o desenvolvimento e bem-estar dos menores e levaram à abertura de processos.
Reconhecendo que o stress causado por razões económicas pode fazer subir a violência familiar, Armando Leandro diz não ter elementos para avaliar até que ponto é isso que está a acontecer.
Mais entregues a si próprios
Tendo em conta ainda, e apenas, os processos abertos ao longo do ano (excluindo, portanto, os que tinham transitado de anos anteriores) a negligência perdeu peso — ainda que se mantenha a segunda causa de sinalização (6407 casos). A terceira situação de perigo reportada tem a ver com o chamado direito à educação: 5551 casos de abandono, absentismo, insucesso escolar e fins que deram origem à abertura de novos processos.
Já as situações de crianças abandonadas ou entregues a si próprias quase duplicaram, tendo passado de 580 para 1150. Cerca de dois terços dos casos estão relacionados com o facto de as crianças ficarem temporariamente sozinhas em casa. Também aumentaram os casos de jovens que adotam, eles próprios, comportamentos que os põem em perigo (consumo de álcool e drogas, por exemplo), de 3177 para 3907.
Armando Leandro defende que mais sinalizações traduzem, sobretudo, uma mudança positiva na sociedade portuguesa. Por um lado, “um aumento da sensibilização da parte da comunidade para os direitos das crianças e para a inadmissibilidade da sua violação”. Ou seja, as pessoas estão a denunciar mais. O juiz faz questão de dizer que “a sinalização de uma criança em perigo é um ato de amor, não é um ato de denúncia”.
Por outro lado, lembra, a escolaridade passou a ser obrigatória até aos 18 anos. Ou seja, há mais crianças e jovens na escola, durante mais tempo, alvo de atenção daquela que continua a ser a entidade que mais casos de perigo remete para as comissões de proteção: a escola.
Em 2013 foram instaurados mais 1195 novos processos do que em 2012; 80% deste aumento está relacionado com situações de abandono e insucesso escolar ou absentismo em jovens com mais de 15 anos — o tipo de situação que leva Armando Leandro a lembrar que uma criança que não estuda “é uma criança pobre”.
O magistrado lembra ainda que, ao frequentarem os estabelecimentos de ensino, outras situações de perigo que possam afetar as crianças (maus tratos, por exemplo), que não as diretamente relacionadas com o direito à educação, passam a ser, também, mais facilmente detetáveis. “Tudo isto é positivo.”
Mais retiradas aos pais
À semelhança de 2012, em 2013 a maioria das medidas aplicadas pelas comissões de proteção de crianças e jovens correspondeu às chamadas “medidas em meio natural de vida” (30.898, ou seja, 89,7% do total). Entre estas, Armando Leandro destaca o apoio psicopedagógico e económico às famílias. “O que só diz bem das comissões”, porque o que se pretende é que, sempre que possível, os pais consigam reestruturar-se para manter as crianças consigo.
Ainda assim, 2013 registou um ligeiro aumento das crianças que foram retiradas e encaminhadas para instituições ou famílias de acolhimento — cerca de 3560 casos contra 3460 em 2012. O mesmo responsável considera que “é natural”, porque os jovens que chegam às CPCJ são de idades cada vez mais avançadas. Basta dizer que em 2012 o grupo etário dos 0 aos 5 anos era o mais representado nos novos processos e, atualmente, o que tem maior peso é o dos 15 aos 18 anos (28% do total). Nestas idades, diz Leandro, “é mais difícil a reparação [das situações de perigo] em meio natural de vida” pelo tipo de problemas que estes jovens trazem. “Embora o desejo seja o de que haja cada vez menos medidas de acolhimento institucional", acrescenta.
A síntese divulgada à comunicação social não contém dados sobre os meios que as comissões de proteção têm para trabalhar. Armando Leandro reconhece que há sempre o desejo de ter mais técnicos, mas que tal não está previsto. E que o tempo de que os elementos das CPCJ dispõem “ainda não é o desejável”: a maioria está a tempo parcial nas comissões. Sublinha, contudo, “a enorme capacidade de trabalho e o empenho notável” das CPCJ, que acabam por fazer muito mais do que seria exigível. E diz que cerca de uma centena já se envolveram num projeto que visa a elaboração de um “diagnóstico infanto-juvenil” das suas áreas de ação e que permite identificar, com a orientação da Comissão Nacional de Proteção de Crianças e Jovens em Risco, os problemas locais, os meios para os combater e traçar planos plurianuais de prevenção. Porque a missão destas comissões não se limita a agir quando os problemas surgem.
In: Público
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