quinta-feira, 10 de setembro de 2015

Disfunções

Não foi necessário levantar os olhos do relatório que afanosamente tentava terminar, nem mesmo consultar a agenda do dia, para compreender quem seria a primeira visita da manhã. A voz estridente e entaramelada a ecoar no corredor e os ruídos metálicos do andarilho a golpear a tijoleira anunciavam sem qualquer dúvida a chegada do António. A porta aberta de rompante, um “Bom dia! Bom dia! Bom dia!” vigoroso, o António a caminhar, abrupto e desarticulado, a mãe logo atrás, também atabalhoada, à força de querer ajudar, os braços carregados de coisas, num afã de amparar o filho.

Levanto-me para o abraçar, há beijinhos e risos pelo ar, uma labuta para acomodar o moço na cadeira ampla à minha frente, o andarilho despenca, arrasta consigo os haveres da mãe, a mala esparramada no chão, de dentro disparam chaves, moedas, lápis, telemóvel, um par de livros. Um deles, de capa cor-de-rosa com chamativas letras em relevo prateado, intitula-se ‘Quem Acredita sempre Alcança – O Poder da Superação’.

Evito olhá-lo uma segunda vez, engulo a irritação que me provoca, começamos a conversar sobre as férias. O António tenta extravasar o entusiasmo que o tema suscita e quer contar-me todas as coisas boas que lhe aconteceram nas últimas semanas, mas apenas consegue verbalizar curtos segmentos desarticulados e fanhosos, complementados com gestos abruptos, desengonçados, cheios de ímpetos que não consegue controlar. O olhar, errático e desirmanado, fita pontos diferentes na parede.

Com o António correu mal tudo o que havia para correr mal: a genética trouxe-lhe as patologias neurológicas e as malformações físicas, o parto traumático exacerbou-as e empossou-as de poderes intransponíveis, numa congeminação maléfica que o transformou numa marionete desconjuntada, onde as forças do universo despejaram, pérfidas, os seus humores pestilentos. Não contentes com tudo isto, as energias cósmicas deram-lhe ainda uma mãe que acredita com fervor que querer é inevitavelmente poder.

A mãe do António é uma mãe maravilhosa, é preciso que se note. O nome dela é Ana, mas há muitos anos que ela deixou de ser a Ana para ser a mãe do António. E é-o tão integral e plenamente que eu duvido que ainda haja espaço dentro de si para ser outra coisa que não a mãe do António. Todos os seus momentos, de todos os dias, de todos os anos, escorrem em função deste único filho, em quem ela deposita uma fé irracional, simultaneamente sublime e nefasta.

E não há maneira de a convencer que não, nem sempre querer é poder, que nem sempre conseguimos ultrapassar os obstáculos, por muita força de vontade que tenhamos, que não, nem sempre a perseverança resulta em sucesso. Não há conversa que não enverede pelo desenrolar dos planos que giza para o futuro do António, pelo enumerar das coisas fantásticas que ele vai poder concretizar, quando ficar melhorzinho – e ele vai ficar melhorzinho. Se se esforçar mais, se for mais perseverante, se for mais esforçado, menos preguiçoso. E o António a ouvir, embatucado, tristonho, a diminuir, esmagado pela fé inabalável da mãe.

Que não, digo-lhe amiúde, que ele não é preguiçoso, é muito esforçado e trabalhador, todos os técnicos, fisioterapeutas e professores o garantem, que se supera quotidianamente na luta contra as suas limitações, que mais não faz porque não lhe é humanamente possível.

Nada. Banhada pela luz artificial dos evangelhos cor-de-rosa de autoajuda e superação, tem sempre à mão um manancial de citações retumbantes com lições de vida. Envolta no néon ofuscante das suas expectativas, alvitra momentos futuros em que o António poderá fazer muito bem tudo o que os outros fazem, se assim o quiser. Aventa exemplos que promissoramente possam ser catalisadores da vontade do António: mostra-lhe cenários auspiciosos ao volante do seu automóvel, com a sua namorada, presenteia-o com sorrisos e abraços incentivadores.

O António, que não consegue enumerar de seguida os dias da semana, não tem coordenação motora para abotoar o casaco e é totalmente dependente de terceiros para a concretização de qualquer necessidade fisiológica, oferece-lhe um sorriso enternecedor e definha na cadeira, avassaladoramente abalroado pelo mistério da fé.

MC

Fonte: ComRegras por indicação de Alexandre Henriques

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