domingo, 13 de setembro de 2015

Como Crato mudou (quase) tudo o que podia mudar

Nuno Crato cumpriu a tradição. Como muitos dos seus predecessores, mudou quase tudo o que podia mudar. Com uma exceção: o ensino superior, onde as reformas anunciadas (financiamento das instituições e reorganização da rede) não saíram do papel. Já no básico e secundário, em nome de “uma maior exigência”, extinguiu as disciplinas mais viradas para a cidadania e reforçou as horas de aulas das outras, mudou programas, mesmo aqueles que tinham entrado em vigor escassos anos antes, estabeleceu novas metas curriculares e restringiu as condições de acesso à profissão docente.

Houve aplausos, mas que rapidamente foram afogados numa chuva constante de críticas, nomeadamente da parte dos professores. Agora que o seu mandato de quatro anos está a chegar ao fim, há pais e docentes que assumem estar “assustados” com o que tudo isto poderá fazer aos alunos e com as consequências “da construção de uma sociedade a preto e branco”.

Mais exames nacionais

A “escola dos números”

Foi uma espécie de regresso ao tempo dos avós. Em maio de 2013, pela primeira vez em décadas, os alunos do 4.º ano apresentaram-se nas escolas para fazer exame às disciplinas de Português e Matemática. Embora não sendo eliminatórias, as provas passaram a contar para a nota final e, portanto, também para a sua aprovação. Chegaram nervosos, muitos já previamente carregados de horas de explicações, como os seus colegas mais velhos. Tem sido assim desde então.

Conforme prometera, o ministro Nuno Crato decidiu alargar aos alunos mais novos, do 4.º e 6.º ano (que se estrearam nas provas em 2012), a exigência de serem avaliados por via de exames nacionais e não só pelos seus professores. Algo que o socialista Marçal Grilo já fizera para o ensino secundário, em 1996, e o social-democrata David Justino para o 9.º ano, em 2002.

Crato justificou a medida não só com a sua recorrente defesa de uma “maior exigência”, como também por ser uma oportunidade de se detetarem precocemente fragilidades nas aprendizagens e se poder intervir mais cedo para as colmatar. A coligação PSD-CDS garante que estas provas serão para manter, caso volte a ser governo. O PS, por seu lado, afirma apenas que se “compromete a reavaliar a realização de exames nos primeiros anos de escolaridade”, embora assinale que esta é uma “prática rara nos países com os quais Portugal se compara e é sistematicamente criticada pelas organizações internacionais”.

“Extremamente redutora” é como o diretor da escola secundária Camões, em Lisboa, João Jaime, classifica a realização de exames neste níveis de ensino, “porque, dando-se ênfase a este tipo de avaliação, pressupõe-se uma prática escolar que abdica do trabalho de exploração e em que não se desenvolve o gosto da descoberta”. O diretor do agrupamento de escolas de Carcavelos, Adelino Calado, confirma: “A introdução dos exames no 4.º e 6.º ano apenas teve o condão de produzir estratégias de ensino/aprendizagem que visam essencialmente o ‘resultado na prova’, em vez de promoverem aprendizagens significativas e estruturantes.”

O investigador da Universidade do Minho José Pacheco considera que os resultados dos exames “não podem ser ignorados”, mas alerta que “a qualidade das aprendizagens nem sempre é compatível com uma escola centrada exclusivamente nos testes e, de forma mais genérica, nos números”. “A escola dos números é a excelência da política educativa de Nuno Crato”, comenta.

O próprio presidente do Instituto de Avaliação Educativa, o organismo responsável pela elaboração e classificação dos exames, admitiu, em entrevista recente (...), que os exames não se têm traduzido de facto numa melhoria das aprendizagens.

Porque a terminologia também pesa, o Ministério da Educação e Ciência optou por apresentar os exames do 4.º e 6.º ano como provas finais de ciclo. Na prática, os alunos estão em escolas que se têm vindo a transformar cada vez mais em “centros de treino” para exames. “Não entendo porque [as escolas] fazem isso. Estão sempre a falar do que vem e do que pode vir no exame. Parece que tudo é feito para nos pressionar”, comentou, a propósito, um aluno do 9.º ano do Funchal, (...).

Já Ramiro Marques, professor do ensino superior, que foi nomeado pelo Governo para o Conselho Nacional de Educação, defende que a realização de exames pelos alunos mais novos “marca o reforço de uma cultura pedagógica mais exigente, responsabiliza mais os professores, introduz mais competição entre escolas, proporciona mais informação aos pais no ato de escolha da escola e torna os alunos mais resilientes”.

Isabel Le Guê, diretora da escola secundária Rainha D. Amélia, em Lisboa, considera que os exames do 4.º e 6.º ano, “sobretudo enquanto medida que visa aferir e avaliar o sistema educativo e a qualidade das aprendizagens dos alunos, terão certamente um impacto duradouro no sistema educativo”. Só que também “poderá levar a um possível aumento das taxas de retenção”, alerta o diretor do Camões.

Os últimos dados sobre as percentagens de chumbos (taxas de retenção) por ano de escolaridade, publicados pela Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência, dão conta que tal já aconteceu no 6.º ano. Em 2012, primeiro ano de realização dos exames, foi de 12,7%, quando no princípio da década estava em 12,4%. E em 2013 subiu para 14,7%.

A “obsessão” pelos resultados nos exames poderá acentuar-se ainda mais com os novos critérios para a concessão de créditos horários às escolas, que se traduzem em mais recursos humanos, alerta Fernando Nabais, professor de Português e Latim. Desde 2012, entre estes critérios figuram a melhoria nos resultados dos exames e a redução da diferença entre as notas dos alunos nestas provas e aquelas que lhes são dadas pelos seus professores. Para Nabais, a atribuição destes créditos às escolas com melhores resultados é “uma medida típica da gestão puramente empresarial”, que reflete a “mentalidade economicista”, que, segundo ele, subjaz à política de Nuno Crato, do mesmo modo que já tinha presidido às políticas das duas ministras que o antecederam, frisa.

Mas com Nuno Crato as escolas e as famílias passaram, por outro lado, a ter mais e melhor informação estatística sobre o sistema educativo, através do portal Infoescolas, lançado em 2014, e também sobre o percurso individual de cada aluno, o que permite, por exemplo, identificar quais os estabelecimentos que conseguem que os alunos tenham melhores resultados no final do secundário do que aqueles que obtiveram no fim do 3.º ciclo ou o inverso.

“Sei que é uma questão que não gera consensos, mas não tenho dúvidas das vantagens da divulgação pública de dados concretos e sérios que traduzam, ainda que em parte apenas, o trabalho que se faz nas escolas”, afirma a diretora da secundária Rainha D. Amélia. Já o responsável pelo Camões, embora não negando a importância das estatísticas, alerta que “o uso exclusivo dos números descontextualiza a realidade individual de cada escola”.

Revisão curricular

Mais Português e Matemática, menos cidadania

A socióloga Maria Álvares é lapidar na apreciação que faz sobre a reforma curricular aprovada por Nuno Crato em 2012, um ano depois de chegar ao poder, que extinguiu as disciplinas de Formação Cívica, Estudo Acompanhado e Área de Projeto. “Com esta alteração, pela primeira vez na história da escola pública democrática, o ensino básico perde o seu caráter de preparação integral para o exercício pleno da cidadania”, afirma a investigadora do ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa.

A sua extinção a favor de um maior reforço da carga horária das disciplinas apresentadas como “estruturantes, como Português e Matemática, foi uma das primeiras grandes mudanças introduzidas por Crato e que a coligação PSD-CDS afirma que manterá, caso venha a ser de novo governo após as eleições de outubro, adiantando (...) “que a OCDE elogiou o reforço das disciplinas estruturantes e esta revisão curricular”.

Por seu turno, o PS diz que rejeita “a redução do currículo que tem ocorrido nos últimos anos” e que pretende “garantir que todas as crianças e jovens concluam os primeiros nove anos de escolaridade com uma educação que esteja alicerçada numa ampla variedade de aprendizagens”, incluindo o domínio das artes e da cidadania.

Para Isabel Le Guê, diretora da escola secundária rainha D. Amélia, em Lisboa, “a centralização nas alegadas disciplinas-base” teve como consequência “um certo esvaziamento dos saberes e da (re)conhecida importância da sensibilidade estética, artística e cultural”. Sem subestimar a importância daquelas disciplinas, Le Guê afirma também não ter dúvidas “em refutar essa visão redutora do que deve ser o processo de ensino-aprendizagem” e em evocar o seu receio face às consequências desta opção — “a construção de uma sociedade a preto e branco”.

Jorge Ferraz, da associação de pais do agrupamento de Escolas Baixa-Chiado, aponta no mesmo sentido. “Como pai e professor, sinto-me, mais do que preocupado, assustado. Não só com a visão do conhecimento como mero fator de competição, mas também porque se trata de uma formação ideológica que se esconde sob a aparente neutralidade da quantificação”, desabafa.

Um retrato da escola de hoje apresentado por este pai: “Os alunos têm aulas a mais, matérias a mais, treinam-se para um teste e, passada essa etapa, já nem se lembram do que estudaram. Falta-lhes tempo para compreender. E os professores vivem obcecados com cumprimento de metas como se de descritores ou listas de verificações de inspeções sanitárias se tratasse.”

Ramiro Marques, professor do ensino superior e membro do Conselho Nacional de Educação, tem uma visão diametralmente oposta. Diz que as alterações curriculares introduzidas por Crato “simplificam e tornam mais transparente o que se ensina em cada ano de escolaridade, facilitam a definição de objetivos e o processo de planificação e avaliação de ensino e permitem uma mais eficaz prestação e contas”.

Um dos exemplos mais conhecidos relativos às novas metas curriculares, aprovadas a partir de 2012, diz respeito à velocidade de leitura que deve ser alcançada pelos alunos do 1.º ciclo. Aos sete anos, por exemplo, um aluno deve conseguir ler “90 palavras por minuto”. As metas curriculares estabelecem o que os alunos devem saber no final de cada ano de escolaridade, definindo para o efeito uma série de objetivos e descritores de desempenho.

A definição de metas curriculares não foi uma novidade de Crato. A sua predecessora no cargo, Isabel Alçada, já as tinha introduzido, embora sob o nome de metas de aprendizagem e com um caráter muito menos exaustivo. Foram aprovadas em 2010 e alteradas dois anos depois pelo atual ministro da Educação.

Na sequência das metas, Crato aprovou depois novos programas para as disciplinas do básico (e três do secundário), mesmo para aquelas, como Português e Matemática, que tinham documentos orientadores aprovados escassos anos antes, mas sobre os quais o ministro nunca escondeu as suas divergências. Fernando Nabais, professor de Português e Latim, diz que “ainda é cedo para avaliar” quais os impactos da revisão curricular, embora destaque como positivo o facto de na disciplina de Português se ter recuperado “a importância da Literatura e da História de Literatura, o que poderá permitir que todos os alunos voltem a ter acesso a uma herança cultural cujo conhecimento é fundamental para a formação de qualquer cidadão”.

Jaime Carvalho e Silva, dirigente da Associação de Professores de Matemática, traça outro quadro. “No que diz respeito à Matemática, há uma desmotivação crescente de professores e alunos, com uma disciplina que regressou aos anos 60-80 do século passado, com uma abstração precoce e exagerada, que tão mau resultado deu na altura”, aponta.

Prevê que este caminho levará a “um grande abandono da disciplina de Matemática A no secundário por parte dos alunos e por isso defende que só existe “uma resposta possível: repor imediatamente os programas” que estavam em vigor antes de Crato. Também Adelino Calado, diretor do agrupamento de escolas de Carcavelos, não acredita que todas estas mudanças “se mantenham por muito tempo”: “Não se tendo avaliado o sistema, no seu todo, de forma sistemática, qualquer ‘reforma’ peca por falta de credibilidade.”

Da parte da coligação PSD-CDS a resposta é taxativa: “Rasgar esse trabalho seria irresponsável, até porque forçaria novas mudanças e constituiria um fator de desestabilização para os alunos e professores.” O PS critica a “instabilidade” que foi criada nas escolas por estas medidas — que “contrariam orientações internacionais” para que haja estabilidade de programas —, mas nada adianta sobre se vai de novo mudar o que foi mudado por Crato. “É fundamental assegurar uma maior estabilidade nas escolas, também nesta área, e criar condições para que estas possam gerir o currículo nacional de forma flexível e contextualizada”, frisa aquele partido (...).

Para Nuno Domingues, professor contratado há 11 anos, a revisão curricular “foi o exercício mais bem conseguido da governação de Nuno Crato no que à redução de professores diz respeito. Um verdadeiro exercício de engenharia que levou à perda de componente letiva de muitos professores do quadro [os chamados ‘horários zero’] e ao desemprego milhares de contratados”. Em 2009-2010, estavam nas escolas cerca de 34 mil docentes a contrato, um número que desceu para perto de 15 mil em 2013-2014.

Qualificação e acesso dos professores à profissão

Alterações não chegaram às salas de aula

Com base no postulado de “não se pode ensinar bem o que não se sabe bem”, Nuno Crato promoveu várias medidas com que pretendeu melhorar a qualificação dos professores. Nas escolas e no meio académico, contudo, há quem acredite que a intenção do ministro era outra: a de limitar o acesso à profissão docente.

Crato mexeu em muita coisa neste campo: fez aumentar a duração dos cursos de Educação Básica destinados aos futuros professores; alterou a forma de acesso a esses cursos e os estudantes já sabem que, se quiserem candidatar-se à licenciatura em Educação Básica em 2017-2018, não poderão descurar Português e Matemática, que passam a ser exigidos como provas de ingresso.

Esta alteração mereceu críticas como a do presidente do Conselho Coordenador dos Institutos Superiores Politécnicos, Joaquim Mourato, que a considerou “incompreensível”, principalmente por ser generalizada a pessoas que nunca lecionarão Matemática. Mas também há simpatia pela medida de Crato. Ramiro Marques, professor da Escola Superior de Educação de Santarém e membro do Conselho Nacional de Educação, advoga que era preciso evitar que continuassem a aceder “à profissão pessoas com graves e profundas lacunas em áreas fundamentais do conhecimento e, principalmente, a Matemática”.

Também José Pacheco, especialista em Educação da Universidade do Minho, apoia a decisão de Crato, acentuando, como o ministro, que Matemática e Português são “disciplinas nucleares para os alunos e, portanto, também para os professores”. Do que nenhum tem dúvidas é que isso fará baixar o número de candidatos a professores.

De resto, face às maiores dificuldades de acesso à profissão, os futuros professores, que na visão de Crato sairão mais qualificados, não conseguirão, porém, dar aulas tão cedo. O ministro não conseguiu intervir junto daqueles que já estavam no sistema, por muito que não tenha escondido que lhe agradaria fazê-lo. Chegou a comentar, a propósito, que não podia levar os professores do quadro a exame. Nessa altura, ainda estava convencido de que poderia selecionar os melhores de entre os “contratados”, como são conhecidos os docentes aos quais, durante décadas, o Estado recorreu de forma sistemática.

Neste caso, Crato acreditou que bastar-lhe-ia ressuscitar uma intenção do Governo PS e aplicar a Prova de Avaliação de Conhecimentos e Capacidades para Professores (PACC) que estava prevista desde 2007 no Estatuto da Carreira Docente. E, simultaneamente, exigir a aprovação a quem quisesse candidatar-se a dar aulas — um universo que na altura rondava os 45 mil professores.

O que conseguiu é, no entanto, muito diferente do que concebeu. A primeira edição da prova foi aplicada a apenas 10.220 professores, porque, nas vésperas da sua realização, o ministro cedeu aos protestos e dispensou os docentes com cinco ou mais anos de serviço e a qualificação mínima de Bom — ou seja, na prática, a maior parte dos que efetivamente chegam, anualmente, às salas de aula.

Por outro lado, o modelo de prova também não convenceu. Foi criticado por investigadores, como José Pacheco e Ramiro Marques, e, para cúmulo, pelo próprio conselho científico do Instituto de Avaliação Educativa (Iave), o organismo que a concebeu. Este considerou que PACC não é “válida e fiável” no objetivo a que se propõe e tem como “propósito mais evidente” impedir o acesso à carreira docente.

O PS, que inventou a prova, não chega ao ponto de a enterrar, mesmo sendo ela tão polémica e estando em campanha eleitoral. Em resposta (...) promete apenas suspender a sua realização e proceder “à reponderação dos seus fundamentos, objetivos e termos de referência”.

Fosse ou não aquele o objetivo do ministro, o número de candidatos nos concursos para colocação de professores sem vínculo tem vindo a baixar desde que Crato chegou ao Governo. De mais de 40 mil caiu para menos de 27 mil, dos quais, este ano, 90% ficaram fora das escolas.

Neste contexto, Nuno Crato lembra que fez ingressar nos quadros do MEC 4000 professores contratados; e a mais representativa organização sindical, a Federação Nacional de Professores, contrapõe que isso está longe de compensar a saída dos milhares que se aposentaram ou rescindiram nos últimos anos. E prevê que a situação dos que querem dar aulas na escola pública se agrave, devido à forma como Crato “escancarou as portas ao ensino privado”.

“As alterações foram de tal forma ambiciosas que nem os privados a imaginariam possível”, observa também Adelino Calado, diretor do agrupamento de escolas de Carcavelos, em Cascais. Refere-se à aprovação do novo Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo que na altura a associação do setor saudou como o momento “que antecede o início de uma nova era”.

Ficaram consagradas as condições para financiar diretamente as famílias, que poderão escolher entre o público e o privado; o financiamento de turmas do ensino particular deixou de ter como condição a ausência de oferta pública na proximidade dos colégios; e, no que respeita à liberdade de gestão do currículo, por exemplo, os estabelecimentos privados passaram a estar nas mesmas condições que as escolas públicas com contrato de autonomia.

Ensino vocacional

Modelo alemão arrisca-se a ser “oferta de segunda”

É uma das “jóias da coroa” do mandato de Nuno Crato. O ministro decidiu imprimir a sua marca também no campo do ensino profissional, criando os chamados “cursos vocacionais”, para onde podem ser direcionados alunos a partir dos 13 anos, se por essa altura já tiverem chumbado duas vezes no mesmo ciclo de escolaridade. Tem como modelo o ensino dual alemão, que articula a componente pedagógica com uma forte formação em contexto de trabalho (nas empresas).

Este sistema passou a estar presente nas escolas públicas, a partir do ano letivo 2012-2013, através de uma experiência-piloto que envolveu 13 escolas do ensino básico (do 7.º, 8.º e 9.º anos) e 280 alunos. Em 2014-2015 já frequentavam estes cursos cerca de 25 mil alunos, dos quais 1910 do ensino secundário. Segundo o Ministério da Educação e Ciência (MEC), a oferta neste nível de escolaridade vai triplicar este ano letivo.

O Governo anunciou há dois anos que queria ter 200 mil alunos nas vias profissionalizantes em 2020. Em 2013-14 eram cerca de 162 mil, dos quais a maioria estavam inscritos nos cursos profissionais existentes nas secundárias públicas. O peso da componente de formação prática nos cursos profissionais, cuja duração é de três anos, é de cerca de 50%, enquanto nos vocacionais, que duram dois anos, se pretende que chegue aos 70%, estando envolvidas no projeto, segundo o MEC, cerca de 5000 empresas.

Mas na prática, adianta o diretor do agrupamento de escolas de Carcavelos, Adelino Calado, ”a maioria dos cursos vocacionais são desenvolvidos dentro das escolas devido às dificuldades do tecido empresarial português [para absorver os alunos], matando assim à partida o objetivo a que se propunham inicialmente”: o de propiciar uma melhor integração no mercado de trabalho. Já o MEC diz que “esta oferta tem contribuído para a redução do abandono escolar, para o desenvolvimento de novos conhecimentos e capacidades e para uma melhor preparação dos alunos, tendo em vista a sua integração no mercado de trabalho ou o prosseguimento de estudos”. 

O ensino vocacional tem vindo a substituir os chamados “Cursos de Educação e Formação” (CEF), criados em 2004 e também destinados a alunos com insucesso escolar, mas cuja frequência só era permitida a partir dos 15 anos. É uma das diferenças assinaladas pela socióloga Maria Álvares, segundo a qual a antecipação da idade de escolha do percurso vocacional para os 13 anos está “em clara contradição com os princípios instituídos na Lei de Bases do Sistema Educativo e em contraciclo com a tendência seguida um pouco por toda a União Europeia”, de atrasar a entrada dos estudantes nos percursos vocacionais.

Por outro lado, “não garantem reais possibilidades de retorno à frequência das vias regulares no ensino secundário, dada a reduzida carga horária das disciplinas alvo de exame nacional”, acrescenta a investigadora do ISCTE. Os alunos que concluem os cursos vocacionais podem passar para o secundário sem realizarem os exames nacionais do 9.º ano, se optarem por prosseguir nesta oferta ou escolherem um curso profissional. Mas para reintegrarem o ensino regular, mais vocacionado para a continuação de estudos no superior, já são obrigados a realizar as provas finais de Português e Matemática.

Maria Álvares lembra, a este respeito, que os antigos CEF que conferiam equivalência ao 9.º tinham uma carga horária de 2109 horas/ano, ocupando o Português e a Matemática mais de 300 horas. Já nos novos cursos vocacionais deste nível, que podem ser completados num prazo de um ou dois anos, a carga horária global baixou para 1100 horas, das quais apenas 220 são ocupadas pela lecionação de Português e Matemática. Segundo esta socióloga, a estratégia do atual Governo parece ser assim “a de estimular a permanência na escola de alunos em situação de insucesso escolar através da criação de uma oferta educativa de menor qualidade e estatuto social que não garante a equidade no final do ensino básico e a igualdade no acesso ao ensino secundário”.

O investigador da Universidade do Minho José Pacheco lembra, por seu lado, que a meta da União Europeia é a de que 50% dos alunos frequentem o ensino profissional. “Em Portugal, atualmente, esta percentagem é de 42% e aumentá-la significa caminhar no sentido da convergência europeia”, constata, para acrescentar que, “porém, é fundamental que o ensino profissional esteja adaptado à realidade portuguesa e que os cursos correspondam a efetivas necessidades”. “Além disso, é urgente que o ensino profissional seja para todos e não, por norma, para os que têm insucesso escolar”, defende.

Maria Álvares alerta ainda que, “à medida que este tipo de ofertas for sendo conotado como ofertas de segunda, vai ser crescentemente difícil convencer alunos e famílias a escolher essas vias e empregadores a contratar quem delas sair”. Tudo razões que a levam a considerar como “bastante duvidoso que estes cursos possam contribuir para a redução da taxa de abandono escolar a médio e longo prazo, embora possam ter efeitos de curto prazo”, como sucedeu nos primeiros anos desta experiência.

Ramiro Marques, professor do ensino superior, que integrou o grupo de trabalho nomeado pelo MEC para acompanhar o lançamento dos cursos vocacionais, aplaude a iniciativa. Defende que a extensão do ensino vocacional e profissional “vai aproximar a cultura das escolas da cultura das empresas e obrigar os professores das áreas técnicas e vocacionais a um processo contínuo de atualização de saberes e competências”. Está, aliás, convicto, de que, “no futuro, as escolas que não forem capazes de se aproximar das empresas, tanto ao nível da construção curricular como na realização de estágios profissionais, irão desaparecer”.

Com vista a ajustar a oferta de cursos profissionais às necessidades do mercado de trabalho, a Agência Nacional para a Qualificação e o Ensino Profissional inquiriu recentemente 1630 empresas nacionais. Resultado: as qualificações que estas disseram mais procurar são as de empregado de comércio e de restaurante.

Financiamento

Escolas perderam quase um quarto do dinheiro

O gigantismo do número torna-o difícil de compreender: 1,73 mil milhões de euros. Eis a soma do dinheiro que a Educação perdeu ao longo dos últimos quatro anos. Depois percebe-se como se chega aqui: o sistema educativo tem hoje menos custos, porque tem menos professores, menos funcionários e também menos estabelecimentos de ensino. Fruto dos cortes, as escolas foram forçadas a subcontratar alguns serviços e lançar estratégias apertadas de controlo de despesa em aspetos tão quotidianos como os gastos com energia. Não será preciso esperar pelos próximos anos para perceber os impactos: os efeitos negativos já se sentem na qualidade do sistema educativo, alertam os especialistas ouvidos (...).

A política de corte no financiamento público do ensino básico e secundário “está a ter, já hoje, consequências muito negativas e duradouras na qualidade do desempenho educativo global”, aponta Jorge Martins, do Centro de Investigação e Intervenção Educativas. Elisa Alves, investigadora no Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do ISCTE e que tem trabalhos publicados sobre financiamento público da Educação, antecipa que há consequências “capazes de se estender além do curto prazo”.

Em tempos de austeridade, os cortes anunciados a cada novo Orçamento do Estado (OE) não foram surpresa para ninguém. A Educação foi, porém, a área de intervenção do Estado mais afetada ao longo dos últimos quatro anos, perdendo 23,9% da verba disponível em relação a 2010. No último OE apresentado pelo executivo liderado por José Sócrates estavam inscritos 7,28 mil milhões de euros para o ensino básico e secundário, no OE de 2015, conhecido há pouco menos de um ano, a verba destinada ao setor tinha baixado para 5,54 mil milhões.

Para justificar este corte no financiamento público do setor não bastará apontar as implicações da ajuda externa. O memorando de entendimento com a troika, que vigorou nos primeiros três anos de mandato, previa uma redução de gastos na Educação de 370 milhões de euros para o conjunto dos dois primeiros anos de execução. Todavia, logo no primeiro Orçamento do Estado do atual executivo, esse impacto foi ultrapassado — menos 404 milhões de euros no total. Esse esforço atingiu três vezes mais do que o previsto durante o período de aplicação do programa de ajustamento e prolongou-se no primeiro OE pós-troika.

Onde se sentem já os resultados do menor volume de dinheiro canalizado para a Educação? “Os cortes, conjuntamente com fatores como a diminuição do número de alunos, parecem contribuir para uma certa retração de alguns indicadores de desempenho, como as taxas de escolarização e de transição”, responde Elisa Alves. A opinião de Jorge Martins vai no mesmo sentido: piores resultados escolares, saída de milhares de professores do ativo, proliferação dos mega-agrupamentos e aumento de horas de trabalho burocrático dos professores.

O especialista do Centro de Investigação e Intervenção Educativas defende também que os problemas como os que envolveram a bolsa de contratação de professores e colocação de docentes, no início do ano letivo passado, provocando um autêntico caos nas primeiras semanas de aulas, são motivados pela perda de competências na estrutura do Ministério da Educação. A “redução drástica” no número de funcionários fez com que o “aparelho técnico-administrativo do ministério” perdesse competências. “A qualidade do serviço tem caído brutalmente”, avalia Martins.

Os dois especialistas não acreditam que o cenário de desinvestimento no setor venha a inverter-se com um novo governo. A “degradação parece estar para durar”, considera Jorge Martins. Elisa Alves confirma a ideia: “Não parece possível que nos próximos anos se consiga regressar aos níveis de financiamento que assistimos na primeira década deste novo milénio.” (...)

Fonte: Público

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