Sobre a PACC (Prova de Avaliação de Conhecimentos e Competências) dos professores já me pronunciei sobejas vezes, a primeira das quais nesta coluna, em 7 de fevereiro de 2008. O que passo a escrever tem duas finalidades: apelar à memória escassa da maioria, para melhor compreendermos a atitude ignóbil de Nuno Crato, e denunciar com frontalidade que a fixação do ministro no papel sacro dos instrumentos de avaliação é demencial.
Com o truque que todos conhecemos, para impedir que os sindicatos pudessem apresentar um pré-aviso de greve, o ministro da Educação atuou sem educação nem escrúpulos. Usou o capote da desfaçatez para bandarilhar uma lei da República, que protege um direito fundamental. Portou-se como um caçador furtivo a atirar sobre cidadãos que o Estado enganou, com dolo agravado por habilidades grosseiras. E foi a primeira vez que assim se desvinculou da ética política e da lealdade que deve àqueles que governa? Não, não foi! Os exemplos repetem-se e há muito que vêm desenhando um carácter.
Foi ele que, em início de mandato, revogou os prémios de mérito dos alunos, sem aviso prévio e atempado, quando eles já tinham cumprido a sua parte.
Foi ele que obrigou crianças com necessidades educativas especiais a sujeitarem-se a exames nacionais, em circunstâncias que não respeitaram o seu perfil de funcionalidade, com o cinismo cauteloso de as retirar, depois, do tratamento estatístico dos resultados.
Foi ele que, dias antes das inscrições nos exames do 12.º ano, mudou unilateralmente as regras, ferindo de morte a confiança que qualquer estudante devia ter no Estado.
Foi ele que, a uma sexta-feira, simbolicamente 13, sem que se conhecessem os créditos atribuídos às escolas, sem que as matrículas estivessem terminadas e as turmas constituídas, obrigou os diretores a determinarem e comunicarem o número de “horários zero” para 2012-2013, sob ameaça de procedimento disciplinar, lançando na angústia milhares de docentes com dezenas de anos de serviço para, na semana seguinte, recuperar o que antes havia levianamente subtraído. Foi ele que abriu esse concurso com uma lei e o encerrou com outra, num alarde gritante de discricionariedade nunca vista.
A conferência de imprensa, significativamente marcada para o horário nobre do dia da prova da humilhação dos professores, mostrou-nos um ministro obcecado pela vã glória que a jornada lhe proporcionou, incapaz de discernir, como qualquer alienado, que o seu fundamentalismo patológico sobre o papel dos instrumentos de avaliação está a destruir o sistema nacional de ensino. Os professores são cada vez mais meros aplicadores das mediocridades do IAVE e cada vez menos professores. O tempo do ensino é comido pela loucura de tudo examinar, com provas cheias de erros inconcebíveis e qualidade duvidosa. Todo o ano, tudo se verga aos exames e à alienação que provocam. Preparar exames, treinar para exames, substituir tempos de aulas por tempos para fazer exames, corrigir exames, tirar ilações de rankings, pagar a Cambridge e não pagar aos nacionais. E, quando os problemas surgem, o ministro puxa pela cabeça doente e chama a polícia. Sim, cidadão que me lê, olhe para as televisões e reconheça que, quando se tornou banal a presença da polícia dentro das nossas escolas, algo vai mal com a democracia que devíamos ensinar aos seus filhos.
Para que serviu o segundo exame aplicado às crianças do 1.º ciclo do básico, um mês depois de terem reprovado no primeiro, senão para mostrar que o modelo é inadequado?
Para que serviu a avaliação dos centros de investigação, senão para destruir o que foi laboriosamente construído ao longo das duas últimas décadas, transferir para o estrangeiro uma fatia do parco erário público e mostrar que a fraude é permitida e fica impune?
Em matéria de exames, é factual, o país nunca tinha assistido a tantos dislates como os que o “rigor” de Crato já nos proporcionou: efetivação de provas na ausência de secretariado de exames; exames realizados sem professores suplentes e sem professores coadjuvantes; exames vigiados por professores que lecionaram a disciplina em exame; ausência de controlo sobre a existência de parentesco entre examinandos e vigilantes; salas invadidas e interrupção de provas; tumultos que obrigaram à intervenção da polícia; desacatos ruidosos em lugar do silêncio devido; sigilo quebrado com o uso descontrolado de telefones e outros meios de comunicação eletrónica; alunos e professores aglomerados em refeitórios; provas iniciadas depois do tempo regulamentar.
Estes exames e esta política vieram, no dizer de Nuno Crato, para conferir rigor e exigência ao sistema e, nessa medida, o estabilizarem. Mostram as evidências de que rigor falamos e demonstram os factos (e a polícia) que, em vez de estabilidade, temos instabilidade como há muito não existia. Se alguma coisa faz sentido é admitir que estes exames só servem um maquiavélico projeto de elitização do ensino.
Santana Castilho
Professor do ensino superior (s.castilho@netcabo.pt)
In: Público
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