Muito se tem escrito sobre a falta de nascimentos e a falência de políticas de incentivo à natalidade em Portugal. É, contudo, escasso o debate profundo sobre como cuidar e criar as crianças que já existem – todas - sem excepção. Facilmente obtemos estatísticas que nos permitem conhecer o número de crianças ditas em “perigo”.
De acordo com o Relatório Anual da Comissão Nacional de Proteção de Crianças e Jovens, em 2013 foram instaurados 30.344 processos de promoção. Ingenuamente, por vezes, assumimos que a esmagadora maioria destas crianças foram (des)cuidadas por pais pobres, “desequilibrados”, excluídos, que recebem ou deixaram de receber subsídios, por pais pouco escolarizados, pelas famílias chamadas desestruturadas, ou, numa perspetiva mais trendy, “multidesafiadas”.
Olhar cómodo, este, e apaziguador, também, pois, à semelhança do que acontece noutras problemáticas socialmente inquietantes, situa os problemas num lugar longe de nós, distancia os nossos filhos das outras crianças, sim, dessas que estão em risco porque os pais estão à margem do nosso mundo.
Desenganemo-nos, estes números são preocupantes por, pelo menos, três motivos: porque representam a dura realidade de muitos milhares de adultos que não foram capazes de cuidar as suas crias. Depois, porque a privação de cuidados na infância é um forte preditor da emergência de problemas de saúde mental na idade adulta. Outro motivo, talvez mais perturbador, remete-nos para a reflexão sobre os meninos que não estão nestas estatísticas e que também estão em perigo. Os que têm pais imaturos e egocêntricos, os que são vítimas de más avaliações e decisões judiciais e de processos que se arrastam demasiado, os que estão negligenciados dentro de casas repletas de bonecos e tablets, os que são emocionalmente maltratados durante toda a sua infância por pais em permanente conflito, mantido em nome do suposto amor que têm pelos filhos, os que crescem num espaço de disputa em que se cruzam as mágoas e frustrações dos adultos, utilizando os filhos, onde as crianças não podem exprimir livremente o amor que têm pelo pai e pela mãe.
Estranhas formas de amar estas...não sabe amar um filho quem não o educa e cuida, e isso implica ser maduro, ter alguma inteligência e ser sensível. Palavras pouco técnicas, é certo, todas elas têm um sinónimo nos livros de psicologia, mas não é a tecnocracia da parentalidade que nos guia neste texto.
Estão em perigo crianças que crescem num território ocupado pelas mais destrutivas armas contra o crescimento: a insegurança, a falta de respeito pela individualidade da criança e pelas suas necessidades emocionais. Se existe desarmonia no nosso corpo, a potencialmente mais perigosa é a discordância entre a capacidade reprodutora e a capacidade parental. Temos que admitir que nem todas as pessoas que têm filhos são capazes de vir a ser pais e mães. Numa perspectiva realista, temos de assumir que não existe uma estrutura familiar ideal, urge desafiar preconceitos e estereótipos tão limitadores e criar condições para que mais crianças sejam psicologicamente saudáveis. Nesta óptica, muitos processos de Regulação do Exercício das Responsabilidades Parentais seriam, provavelmente, processos de Promoção e Protecção e, assim, cumpriríamos a Convenção dos Direitos das Crianças, sem fundamentalismos e ideologias sexistas que só contribuem para a agudização de radicalismos e nada de positivo acrescentam.
Criar bem as nossas crianças, hoje, com tudo o que isso implica, também poderá ser uma boa estratégia para promover bem a natalidade do futuro.
Catarina Ribeiro
Professora da Faculdade de Educação e Psicologia da Universidade Católica Portuguesa, no Porto
in: Público por indicação de Livresco
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