Quando antecipei, no meu último artigo, que teríamos polémicas longas sobre os exames, não fui profeta. A previsão não tinha mérito. Era, tão-só, corolário primário para quem assiste, atento, à atuação reiterada do Instituto de Avaliação Educativa (Iave), antes com outra designação, mas todos os anos responsável por erros inaceitáveis. Não se equivalessem em mediocridade a qualidade técnica do Iave e a qualidade política do ministro e não estaríamos, pais, professores e alunos, sujeitos a tanta irresponsabilidade.
Para a questão 2.3 do grupo II do exame de Português do 12.º ano, a que se submeteram cerca de 74.000 alunos, a resposta considerada certa pelos critérios oficiais de correção é “ato ilocutório compromissivo”. Porém, a Associação de Professores de Português (APP) e a Associação Portuguesa de Linguistas (APL) afirmaram que a resposta correta é “ato ilocutório assertivo”. A discussão gerada tornou evidente que os especialistas das áreas chamadas à colação (Linguística, Teoria da Comunicação, Pragmática e Hermenêutica) não se entenderam quanto à certeza da resposta. Pois é esse facto, que obrigou o Iave a aceitar ambas, que evidencia a dimensão do disparate em que incorreu, quando decidiu incluir nos itens do exame uma pergunta com estas características. O problema, antes de ser do foro daquelas disciplinas, aterra, em cheio, no domínio da avaliação. Qualquer aprendiz de teoria de construção de testes sabe, desde a primeira lição, que é erro grosseiro incluir uma pergunta deste tipo num exame nacional do secundário. Mas os especialistas do Iave, inimputáveis na sua incompetência, não souberam. Dir-me-ão que a decisão do Iave ultrapassou a questão, que é relevante em termos do futuro académico dos alunos, ao atribuir o meio valor em causa também àqueles que não responderam como previsto nos critérios iniciais de classificação. É só parcialmente verdade. Porque ficará sempre por suprir a perplexidade, o tempo perdido e a tensão acrescida a uma situação por natureza tensa, que uma pergunta ambígua, permitindo interpretações diversas, trouxe aos alunos. A validade de um exame passa por saber se esse exame “mede efectivamente aquilo que queremos medir, tudo o que queremos medir e nada mais do que aquilo que queremos medir” (Thorndike e Hagen, 1977: 56-57. Measurement and Evaluation in Psychology and Education. New York: Wiley).
A pergunta 1 do grupo III do exame de História, também do 12.º ano, reza assim:
“Explique, a partir do manifesto da oposição (documento 2), três dos fatores político-sociais que favoreceram a afirmação de um regime autoritário em Portugal.”
Só que a pergunta não “fala” para o documento 2. A pergunta orienta o aluno para as condições de formação do Estado Novo, enquanto o documento 2 o remete para acontecimentos que ocorreram 35 anos mais tarde (início da guerra colonial e início da decadência do Estado Novo). Os alunos foram induzidos em erro. A pergunta não tem relação com o documento que é invocado. Do cruzamento da pergunta com os critérios orientadores para julgar as respostas resulta uma incoerência. É um caso de desleixo grosseiro, sobre o qual, que me tenha dado conta, o Iave ainda nada disse.
O exame de Matemática A do 12.º ano veio trazer atualidade acrescida à pergunta de sempre: um exame serve para apurar elites ou certificar conhecimentos que se subordinem a programa e objectivos estabelecidos? E na resposta à pergunta radica a polémica que este provocou. De um lado (Sociedade Portuguesa de Matemática à cabeça) aqueles que defendem que a seleção é o fim, porque à universidade só devem chegar as elites. Do outro (Associação de Professores de Matemática inclusa) os que reclamam que o exame deve medir a aprendizagem que teve o programa por referência, porque é obrigatório para quem queira apenas concluir o secundário. Fora o exame equilibrado e serviria os dois propósitos. Um exame bem feito deve permitir que os alunos de positiva modesta ao longo do ciclo de estudos o superem. Isso não impede que contenha questões suficientemente discriminatórias, que forcem a distribuição do universo dos examinandos ao longo de todo o espaço da escala classificativa, de modo a separar os de 10 dos de 15 ou 20. Mas se os de 10 ou 11, regulares ao longo dos três anos da frequência do secundário, forem massacrados com negativas baixas, como muitos prognosticam, então terá razão a APM, que classificou a prova como “completamente desadequada” e “altamente injusta”. Tanto mais que se aproxima dos 90.000 o número de alunos que apenas querem concluir o secundário, sem pretenderem entrar no ensino superior.
A “generalização da avaliação externa”, que a coligação inscreveu no programa de governo, e o “rigor” com que Crato a interpretou traduzem-se na simples substituição do rótulo da mesmíssima tralha: o Iave passou de direção-geral a instituto público para melhor ajudar a sacralização da asneira: corta-se tempo letivo para preparar exames; mandam-se alunos para casa para que outros façam exames; retiram-se professores das aulas para corrigir exames; paga-se a estrangeiros para credibilizar exames inúteis, que nacionais corrigem sem ganhar; adestram-se meninos, professores e escolas para fazerem estes exames.
Santana Castilho
Professor do ensino superior
In: Público
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