Em Portugal, conta Isabel Cottinelli Telmo (Federação Portuguesa de Autismo), poucos autistas conseguem viver com autonomia na sociedade. Encontrar trabalho é raridade até para quem tem talentos excecionais.
"Manuel" tem um talento muito acima da média para a informática. É também autista. As suas capacidades valeram-lhe um emprego numa biblioteca municipal. As suas limitações, nomeadamente ao nível dos relacionamentos sociais, tornaram a sua presença naquele local de trabalho num foco de tensão. "Encarregaram-no de fazer as fichas [das obras literárias no catálogo]. O problema é que ele fazia 20 enquanto as restantes funcionárias faziam cinco. E ainda reclamava com as colegas, chamando-as de mandrionas".
O nome é fictício mas o caso, verdadeiro, é relatado (...) por Isabel Cottinelli Telmo, fundadora e presidente da Federação Portuguesa de Autismo, e serve de exemplo das dificuldades que as pessoas com autismo - mesmo as que apresentam competências extraordinárias - enfrentam para se integrarem na sociedade.
"É difícil a parte da interação social. Temos tentado promover a empregabilidade. Na federação criámos uma plataforma para tentar procurar ofertas de emprego, mas as pessoas [empregadores] não estão muito viradas para isso", reconhece. "Há mesmo alguns casos de pessoas que têm cursos superiores e não arranjam emprego. Ou os que arranjam estão muito abaixo das suas capacidades". Por exemplo, conta há dois irmãos gémeos, "um licenciado em Economia e o outro em Matemática", que trabalham respetivamente "numa bomba de gasolina e a tirar fotocópias num hospital". E estes são os casos extraordinários, "uma ínfima percentagem no universo de pessoas com espetro do autismo".
A capacidade de observar
A personagem de "Raymond", que valeu a Dustin Hoffman o Óscar de melhor Ator no filme "Encontro de Irmãos", de 1988, fixou no imaginário coletivo uma associação entre as doenças do espetro do autismo e capacidades geniais, como um talento inato para o cálculo matemático ou para o desenho. A realidade, diz, é bem distinta, por mais que o ator norte-americano tenha "captado de forma extraordinária" muitos aspetos comportamentais, após passar onze meses a estudar essas pessoas. "No fundo, combinaram no filme todas as capacidades possíveis numa só personagem, o que nunca acontece", explica.
No universo do autismo, explica, "os mais competentes têm o que se define como autismo de alto nível, de alta capacidade funcional", que se resume a ser capaz de desenvolver algumas competências comuns à generalidade da população, como "falar em grupo".
Este grupo era habitualmente situado na definição de síndrome de Asperger, por oposição aos "casos kannerianos", mais complexos. As definições - ambas já fora das classificações atuais - fazem referência ao norte-americano Leo Kanner e ao austríaco Hans Asperger que, em 1944, em dois trabalhos separados, coincidiram nas primeiras descrições de casos desta condição.
Mas existem de facto algumas competências específicas associadas ao autismo. Como a capacidade de observar e de processar o que se vê. "Tenho um filho autista, que tem hoje 51 anos. Não é um autista de alto desempenho mas, quando era criança, olhava para os pássaros que iam no ar e dizia: "São seis". Ele não contava, via", descreve.
Alguns exemplos extraordinários desta capacidade, como uma rapariga chamada Nadia e um homem, hoje com 40 anos, chamado Stephen Wilshire são ainda hoje objeto de estudo e de debate. E os estímulos visuais fazem parte do trabalho quotidiano com todos os autistas: "No caso do autismo, a perceção visual é muito boa. Usa-se nas metodologias de ensino. Mesmo nos menos competentes são as imagens que muitas vezes ajudam a desenvolver outras capacidades."
Aproveitar as características
Centenas de jovens com distúrbios do autismo frequentam as escolas públicas portuguesas. David Rodrigues, presidente da Pró-Inclusão - Associação Nacional de Docentes da Educação Especial - explica que, neste grupo de estudantes, a diversidade de situações obriga a "pensar na melhor forma de aproveitar as características das pessoas". E os casos de "capacidades extraordinárias", com "pessoas que conseguem pensar num aspeto percetivo, de resolução do problema, que é diferente das outras pessoas", não são necessariamente mais simples.
O talento que desapareceu e o talento que não parou de crescer
O caso é objeto de análise quer de psicólogos e psiquiatras quer por especialistas das Belas-Artes mas nunca foi revelado mais do que o seu primeiro nome: Nadia. Aos três anos e meio já desenhava animais e pessoas de forma realista. Aos cinco desenhou este Okapi (imagem de cima), um animal do Norte de África. Aos nove desenhou um cavalo cujo realismo foi comparado com Leonardo da Vinci, mas não sabia usar garfo e faca à mesa. À medida que foi crescendo e adquirindo outras capacidades, como a fala, o talento desapareceu. Aos 20 desenhava... como uma criança de cinco anos. Stephen Wilshire (imagem de baixo), hoje com 40 anos, também é autista de alto rendimento. Mas as suas capacidades nunca pararam de evoluir. Aos cinco anos desenhava de memória, com rigor, edifícios que tinha visto no percurso de autocarro até ao centro para autistas, em Londres. Hoje tem uma pós-graduação em Belas-Artes e é um pintor requisitado no mundo inteiro. Aprendeu a falar aos nove anos. A sua primeira palavra foi: "Papel."
Ao serviço do exército israelita
Alguns países estão a encontrar formas de aproveitar as capacidades excecionais dos autistas. Na última edição da revista norte-americana The Atlantic, é contada a história da Unidade 9900 da "Divisão de Informação Digital" do exército israelita, para a qual são recrutados autistas que, graças às suas capacidades invulgares, analisam em tempo real imagens de satélite de alta resolução, em busca de movimentações suspeitas. As autoridades israelitas garantem que estes homens e mulheres - atualmente na casa das dezenas - já salvaram "muitas vidas".
Fonte: DN por indicação de Livresco
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