Quando acordou para ir fazer exame, Laura Pereira sabia que tinha pela frente um dia importante. A mãe não a deixou sair de casa sem roupa nova e o pai ofereceu-lhe a tão desejada caneta de tinta permanente que vinha substituir o tinteiro onde molhava a caneta de aparo. Fez exame escrito a Português e Matemática, oral a Geografia e História e para os Trabalhos Manuais optou pelo ponto cruz. Estávamos em 1969 e havia até o medo de que o facto de ser canhota a bordar - a escrever foi obrigada a trocar para a direita - desse direito a chumbo.
Laura fez o exame do 4.º ano, na altura designada de 4.ª classe, perante um júri de três professores externos na escola para onde se deslocaram todos os alunos do concelho. Experiência semelhante teve Tomás Vasconcelos, que apesar de realizar a prova em 2015 teve que trocar a Escola Padre Abel Varzim pela Passos Manuel, que centralizou os exames dessa zona de Lisboa, vigiados também por professores que não os seus. Não teve direito a roupa nova nem teve que fazer trabalhos manuais, mas sabia que aquela prova era diferente das que estava habituado a fazer. “Vimos a Polícia chegar com os exames à escola. Sabíamos que era uma coisa importante” (...).
Exame vai, exame vem
São 46 os anos que separam as provas feitas por Laura e Tomás. Neste intervalo, muitas regras foram alteradas, com o exame que marcava o final do 1.º ciclo a chegar ao fim com a mudança da maioria política no Parlamento e no Governo. Após uma resolução dos deputados dos partidos da esquerda, o novo ministro da Educação, Tiago Brandão Rodrigues, pôs ponto final numa das bandeiras do seu antecessor, fazendo a substituição dos exames por provas de aferição, com efeitos já no final do atual ano letivo. Com esta alteração, a prova deixa de ter peso para a nota final (o exame valia 30%) e vai servir apenas para o ministério fiscalizar o cumprimento dos programas curriculares e ter uma noção do desempenho dos alunos.
A Educação em Portugal faz-se de avanços e recuos e os exames do 4.º ano não são exceção: vigoraram durante o Estado Novo, foram extintos após o 25 de abril, reintroduzidos há três anos e chegaram ao fim com o regresso da esquerda ao poder. O BE foi, aliás, o partido mais crítico da medida imposta por Nuno Crato, alegando que configurava um regresso ao Estado Novo. As gémeas Mortágua foram duas das vozes mais ativas da campanha para que se pusesse fim às provas. Se Mariana se referiu aos exames como algo que tinha um “efeito de seriação social”, Joana marcou o seu ponto de vista quando, na Assembleia da República, dirigiu-se à parlamentar social-democrata Nilza de Sena depois de esta ter abordado a política do governo anterior na área da Educação. “Senhora deputada, não sei se fez o exame da 4.ª classe. Fez? Não me diga que teve um ensino medíocre e facilitista que a trouxe até aqui. Eu não tive e cá cheguei. Julgo que ninguém nascido em democracia fez exame da 4.ª classe. No entanto, temos pessoas capazes e qualificadas neste país. Não foi por isso que a sua educação ficou coxa”, argumentou.
‘Sempre houve exames no final da instrução primária’
Apesar da tendência da ala esquerda em associar estes exames ao Estado Novo, os especialistas contactados (...) garantem que o seu início é anterior.
Paulo Guinote, professor do ensino básico e doutorado em História da Educação, lembra que se fazem exames no 1.º ciclo desde a ditadura militar (1926), apesar da escolaridade obrigatória ser apenas até à então designada 3.ª classe, com necessidade de prestar provas para aceder ao ano seguinte.
David Justino, antigo ministro da Educação, vai mais longe e faz a retrospetiva até à educação dos anos 40 do século XIX. “Sempre houve exames no final da instrução primária, tinham era algumas diferenças face aos atuais: não eram nacionais e eram feitos pelos próprios professores das escolas”, explica. Daí que Paulo Guinote prefira falar em exames, tal como os conhecemos, a partir da década de 60, ainda durante o Estado Novo. É, aliás, num decreto-lei de maio de 1960 que é declarada como obrigatória a frequência da 4.ª classe para ambos os sexos, que só termina com a aprovação no exame final.
Fim da ditadura e dos exames
Com o 25 de abril, pôs-se fim aos exames no final do 1.º ciclo, que só regressam com Nuno Crato. Antes, a ministra Maria de Lurdes Rodrigues generalizou aos alunos dos 4.º e 6.º anos as provas de aferição a Português e Matemática, que tinham começado a ser feitas em 2003, mas por amostragem.
Para David Justino, a decisão do governo de Passos de passar das provas de aferição para um exame com peso na avaliação é justificada pelo “poder de motivação” deste tipo de provas. Apesar de preferir deixar as considerações sobre o tema para hoje - dia da apresentação do parecer do Conselho Nacional de Educação, a que preside - faz questão de lembrar a importância da existência de uma avaliação externa. “Serve para aferir classificações, regular as aprendizagens e para orientar o trajeto dos alunos”, resume.
Mais crítico, Paulo Guinote, reconhece a importância de provas finais no 1.º ciclo, mas não deixa de apontar o que de mal considera ter sido feito nos três anos em que os exames nacionais foram regra. “Os alunos não deviam ter que se dirigir a outras escolas, isso causa perturbação”, refere. Além disso, critica o facto de a prova se ter realizado em maio, quando existe uma época de exames no final do ano letivo: “Uma coisa que devia ser encarada de forma natural foi encarada de forma dramática, com a colaboração ativa de quem acha que os exames são uma coisa horrível”.
Fonte: Sol por indicação de Livresco
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