Inês Silva entra na sala com ar envergonhado. Dali a pouco estará a cantar e a dançar, mas não perderá uma natural timidez. Escolherá a Mala Cor-de-Rosade Xana Toc Toc para cantar com os colegas em mais uma sessão de musicoterapia na Escola Básica e Secundária Coelho e Castro, em Fiães, um dos nove agrupamentos do concelho de Santa Maria da Feira em que o projeto De que Som Sou Feito? acontece todas as semanas desde o início do ano letivo. São momentos exclusivamente dedicados a alunos do 5.º ao 12º ano com necessidades educativas especiais. Quatro musicoterapeutas procuram os sons que crianças e jovens trazem dentro de si e exteriorizam para contar o que mexe lá dentro. Tudo importa para trabalhar competências, evidenciar capacidades, desenvolver a concentração e a atenção, procurar o bem-estar dos mais novos.
Inês tem 15 anos, está no 7.º ano, tem síndrome de Down. Chove lá fora e está frio. Inês coloca as mãos na cara de Cristina Castro, a musicoterapeuta que conduzirá a sessão de hora e meia – assistimos a 20 minutos porque gente estranha condiciona comportamentos. “Estão quentinhas, vamos ver se a guitarra também está quentinha”, diz a musicoterapeuta. A canção de boas-vindas começa para dizer olá e perguntar à Inês, ao Pedro, ao João Pedro e à Inês Mota como estão. Os quatro alunos estão sentados em cadeiras que formam uma roda apertada. Estão juntinhos. A guitarra sai de cena e entra o instrumento-rei do projeto, ou seja, o ocean drum, o tambor do mar. É um tambor muito bonito, tem peixes desenhados de várias cores e feitios e pequenas esferas no interior que produzem sons semelhantes aos das ondas do mar quando quebram na areia da praia. As mãos pousam em cima do tambor, fazem-se ritmos, batem-se palmas. Um de cada vez porque é preciso saber esperar. “Que som vocês hoje trazem?”, pergunta a musicoterapeuta. O tambor é a caixa-de-ressonância desses sons que entram naquela sala. Uns mais calmos, outros mais fortes. Inês, por vezes, tapa os ouvidos. Por vezes, quer abraçar o tambor para que seja só dela por uns instantes. Continua envergonhada e com ar bem-disposto. A dada altura pede para dançar. E dança. “Gosto de cantar, desenhar, dançar, pintar”, conta-nos.
Há outra Inês no grupo dos quatro alunos de turmas diferentes, todos referenciados pelos professores de Educação Especial. Inês não pára, a hiperatividade salta à vista. Quer cantar kuduro, Cristina dá-lhe uma pandeireta e pede aos colegas que a acompanhem nas melodias. Os ritmos que as suas mãos deixam no tambor do mar são os mais fortes, os mais frenéticos. Quer pegar na viola para cantar kizomba, ficará mais calma à medida que os minutos avançam. Inês Mota tem 13 anos, está no 7.º ano, e quer ser polícia, ou médica, ainda não sabe bem. Confessa que gosta de fazer desenhos, de pintar palavras, e de relaxar no final das sessões de musicoterapia. “Ouvimos música e fazemos de conta que estamos a apanhar gomas, balões, borboletas”. É assim que descreve o momento final das sessões.
Pedro Duarte tem 14 anos e está no 9.º ano. É o roqueiro do pequeno mas heterogéneo grupo em que as dificuldades de aprendizagem são um denominador comum. Pedro adora Bon Jovi, ouve heavy metal, aprecia o que sai da guitarra elétrica, diz que a musicoterapia “é um espetáculo”. E já sabe o que quer ser quando for grande. “Quero ser pasteleiro. Para o ano, vou para o Porto para ser pasteleiro”, informa. A música soa-lhe bem aos ouvidos e naquela hora e meia não há matéria para meter na cabeça. O colega João Pedro tem 14 anos, é tímido, mostra o seu ar envergonhado quando diz que está no 7.º ano. “Já devia estar no 9.º, não era?”, pergunta sem esperar uma resposta. É sossegado, parece calmo, está apaixonado, escolhe David Carreira para cantar e muda logo depois para a canção Como Ela é Bela do Agir. Todos cantam, mesmo quando não sabem a letra. A improvisação é sempre bem-vinda porque tem sempre muito para contar.
Comunicar sem palavras
Nas escolas públicas do concelho de Santa Maria da Feira, cerca de 350 crianças e jovens do 2.º ciclo ao 12.º ano do secundário têm necessidades educativas especiais. O projeto De que Som Sou Feito?, apoiado pela Fundação Gulbenkian, abrange cerca de 100 alunos. Nestas sessões, em que o limite é de oito alunos na mesma sala, não há receitas. É preciso estar disponível e atento ao que acontece a cada segundo. “É um espaço de partilha. Falamos dos amores e desamores, situações de casa, improvisamos letras e vem ao de cima o que se pensa. A música é um veículo que permite essa exposição emocional”, adianta Cristina Castro, licenciada em Psicologia, pós-graduada em Musicoterapia, presidente da Mutpet – Associação Nacional de Musicoterapeutas, criada em abril do ano passado. É também instrumentista na banda folk Pé na Terra. Até pode haver guião ou fio condutor para cada sessão, mas tudo depende de quem se tem à frente. O currículo de cada um foi devidamente analisado antes de se entrar na sala. “Temos de conhecer o grupo como ele é. As sessões têm um caráter dinâmico e muito livre e é nessa liberdade que os meninos trazem muita coisa”, explica. É preciso, portanto, muita atenção para decidir o que fazer. “Olhar, sentir o grupo, ver como as coisas estão e dar seguimento consoante as necessidades. Temos de pensar no bem-estar deles”, diz Cristina Castro.
Em cada grupo de alunos com necessidades educativas especiais diversas trabalham-se várias componentes: atenção, concentração, respeito pelos tempos de cada um, relação com o outro, equilíbrio emocional, integração social, percepção de si e dos outros ao nível físico, emocional e mental. Além do tambor do mar, as quatro musicoterapeutas do projeto usam guitarras, maracas, pandeiretas, teclados. O corpo também é um instrumento que transmite o som de cada um. A pintura é igualmente um veículo para falar de emoções, alegrias, tristezas, medos e sonhos. Por vezes, constroem-se objetos sonoros a partir de elementos da natureza. O objetivo não é, de todo, aprender música. Nada disso. “Não ensinamos música, utilizamos a música para ajudar a descobrir certas capacidades nas crianças. Trabalhamos com uma arte, que é a música, para, de certa forma, transformar vidas”. A música tem o poder de chegar a todos e, por isso, pode não haver muitas palavras nas sessões. Um sorriso, um olhar, um ritmo, um desenho, uma dança, a forma de relaxar, são os “frutos” que se vão colhendo pelo caminho. Os alunos saem mais leves e levam ferramentas para enfrentar o mundo lá fora.
Ana Matos, licenciada em Psicologia, pós-graduada em Musicoterapia, com formação musical em piano, é uma das quatro orientadoras das sessões. Acredita no potencial da música e neste projeto consegue ver “a motivação e o interesse” dos alunos que, garante, “têm uma necessidade enorme de exteriorizar o que sentem”. A música tem precisamente esse condão de permitir a comunicação sem palavras e de trabalhar a parte emocional. “A música tem a capacidade de trabalhar de forma não-verbal, é facilitadora nesse sentido”, refere. “Se lhe dermos um tambor e pedirmos para improvisarem, sentimos bastante essa vontade de exteriorizarem”, acrescenta. As necessidades são diferentes, os sons também, usam-se sobretudo os instrumentos de percussão para expressar o que vai na alma. No percurso, há boas notícias. Ana Matos tem um aluno que começou por rejeitar a música, mostrou alguma resistência às sessões, era uma desistência quase certa. Mas não foi. No início do segundo período, o aluno anunciou que queria voltar à musicoterapia e voltou.
O projeto tem um prazo de validade, termina no final deste ano letivo. “Se em cada sessão, tivermos a capacidade de estimular positivamente, se dermos bem-estar e qualidade de vida aos alunos, fico feliz e satisfeita com isso”, refere Ana Matos. Paula Nozzari, baterista desde os 13 anos, musicoterapeuta que trabalha em várias áreas da deficiência e doenças mentais, e Natália Santos, psicóloga e musicoterapeuta também envolvida em diversas abordagens da musicoterapia, são as outras técnicas envolvidas no projeto de intervenção educativa que abrange um público especial.
A FapFeira – Federação das Associações de Pais e Encarregados de Educação do Concelho de Santa Maria da Feira colocou o projeto em marcha. Promoveu redes de parcerias, recorreu a técnicos especializados na área, mostrou aos pais outra perspetiva da escola. E quando a Fundação Calouste Gulbenkian abriu candidaturas para projetos dirigidos à Educação Especial, não deixou escapar a oportunidade. A candidatura foi feita e aprovada com apoio ao financiamento do trabalho das musicoterapeutas e à compra de um tambor do mar para cada escola. “Este projeto advém da urgência em criar atividades que melhorem a qualidade do tempo e da aprendizagem que as crianças e jovens com necessidades educativas especiais vivem nas escolas e as relações dos docentes com eles, através da aquisição de novas estratégias de desenvolvimento de um trabalho criativo e de melhoria do bem-estar dos alunos, em complementaridade com o trabalho que já é realizado”, refere Luís Barbosa, presidente da FapFeira. “O crescimento destes alunos deve deixar de se centrar nas suas incapacidades para se focar nas suas capacidades e potencialidades”, acrescenta o responsável.
A musicoterapia, como terapia de desenvolvimento, ainda é pouco conhecida e divulgada. A maioria das escolas da Feira mostrou interesse, entusiasmo e colaboração, uma minoria manifestou alguma resistência. “É um desafio, nem sempre é fácil conseguir entrar nas escolas públicas”. “Este projeto é, de certa forma, inovador, com esta preparação não há a nível nacional. Pode ser um ponto de viragem”, refere Cristina Castro. Luís Barbosa concorda. “Este projeto pretende também abrir precedentes e despertar para a importância destas abordagens. Sendo a música uma linguagem universal e comum a todos, independentemente das suas características e sentidos, e tendo cada um de nós o seu próprio som, acreditamos que é também um veículo para real integração e inclusão”.
Fonte: Público
Sem comentários:
Enviar um comentário