Nove anos depois do acidente, Raquel Jorge consegue caminhar sem muletas, já vai às compras sem ajuda, e aos fins de semana viaja sozinha de comboio de Oeiras, onde vive, para o Centro de Reabilitação Profissional de Gaia, onde frequenta um programa de recuperação neuropsicológica. Tem fisioterapia, terapia ocupacional, treino cognitivo, acompanhamento psicológico. No final do ano irá estagiar para a Câmara de Oeiras. “Quero recuperar a minha independência. Ter uma casa, um trabalho”.
Independência é uma palavra que usa com frequência. Foi atropelada numa passadeira a cinco dias de fazer 18 anos. Tinha deixado Macau, onde vivia desde os quatro meses de idade com os pais, e estava em Portugal para estudar. Era caloira de Comunicação e Multimédia da Universidade Lusíada, já tinha um mês de aulas, queria seguir a área da publicidade. De repente, os planos ruíram numa ida ao cinema.
Ao atravessar uma passadeira para o Oeiras Parque, a 25 de novembro de 2005, foi apanhada por um carro em excesso de velocidade. Bateu com a cabeça no vidro do automóvel e sofreu um traumatismo crânio-encefálico que lhe afetou a fala, a memória e o lado direito do corpo. Os dois amigos que iam ligeiramente mais à frente nada sofreram. “A minha amiga ainda sentiu o carro no rabo. Eu sou uma cabeça dura, parti o vidro”, conta quase sem mágoa. Passou dois anos em hospitais, perdeu a conta às vezes que caiu ao passar da cama para a cadeira de rodas, da cadeira de rodas para a sanita, da sanita para a cadeira de rodas. “Quantas vezes caí no chão e tive de abrir a goela para me virem ajudar”. Por vezes, tentava fintar o destino. “Fazia batota, saía da cadeira de rodas, agarrava-me a ela e empurrava-a. Parti os dentes duas vezes”.
Raquel tem agora 26 anos. É uma jovem adulta bem disposta que quer ser autónoma e que mudou de sonhos. Quer trabalhar na área de secretariado. Tem consciência das suas limitações, tentou, mas não conseguiu tirar a carta de condução. “Tenho reflexos, mas um bocadinho tardios. Se me atirarem uma bola só passados 30 segundos é que me apercebo dela”.
As lesões cerebrais mexeram-lhe no passado. “A minha memória apagou um ano inteiro”. O ano do acidente. Antes disso, a última recordação é da viagem de finalistas do 12.º ano à Tailândia. “E não me lembro de toda”, ri-se. “Esse ano apagou-se, estive em três hospitais e só me lembro do último”. Com graves mazelas no corpo e na cabeça, teve de reaprender a falar, a andar, a ver, a ter autonomia. “Por causa do acidente, a minha memória ficou danificada. O acidente afetou o lado direito do corpo. O olho foi operado, o pé foi operado. Às vezes, o meu joelho falha”. Não se resignou. Depois do acidente, fez voluntariado no centro de reabilitação de Alcoitão e num ateliê de tempos livres a dar explicações de Inglês aos miúdos, e ainda frequentou aulas de pintura na Ar.Co. A mãe apanhou o primeiro avião, deixou o emprego de secretária de notariado em Macau e nunca mais largou a filha. O pai, contabilista de uma empresa de construção civil, mudar-se-ia para Portugal um mês depois, mantendo o vínculo à empresa de Macau.
Humor e força de vontade
Tal como Raquel, Ion Andres também está no Centro de Reabilitação Profissional de Gaia. Entra na sala sem muletas, não precisa de ajuda para sentar-se. Tem 40 anos, é romeno e vive em Espinho, está em Portugal há 12 anos. Estuda para trabalhar numa tipografia e, neste momento, frequenta o curso de técnico de desenho gráfico no centro de recuperação, tendo estagiado num gabinete de arquitectura, onde não ficou. Quer voltar ao mercado de trabalho, está atento às propostas de emprego, continua a enviar currículos.
A sua vida mudou num domingo em que foi ao supermercado com um amigo. Compras feitas, o amigo meteu-se no carro, enquanto Ion colocou o capacete e ligou a mota. Ultrapassou o amigo e pouco depois despistou-se. “Entrei numa curva com velocidade, apanhei areia na roda de trás, tentei equilibrar a mota, puxei o guiador para a esquerda, bati com a cabeça num muro, perdi o conhecimento, caí no chão e parti a coluna”, conta. A descrição que faz do acidente, que se deu a 4 de dezembro de 2007, baseia-se no que o amigo lhe contou, uma vez que esse momento se lhe varreu da memória. “O capacete abriu-se como uma casca de laranja. Se não fosse ele, o meu cérebro tinha ficado no muro”, diz, reconhecendo que quando ia sozinho na mota, “abusava um bocadinho”.
Quando acordou no Hospital Santo António, no Porto, não sentia as pernas. A coluna levou oito parafusos, ficou com o lado direito afetado. Estava vivo, mas os médicos sentenciaram-lhe uma cadeira de rodas para o resto da vida. Ion ficou abalado. “Não queria viver assim e comecei a procurar uma janela para saltar. Mas depois pensei: ‘Se nem sou capaz de segurar num copo de água, como vou subir para uma janela?’”. Percebeu que conseguia controlar o músculo da perna e ganhou ânimo. “Comecei a fazer fisioterapia com muita ambição”. Acabaria por contrariar a sentença médica: só precisou da cadeira de rodas durante seis meses. Hoje usa apenas uma muleta para distâncias mais longas e até ao fim do ano está num programa-piloto do Centro de Reabilitação de Gaia de atividade física adaptada.
Antes do acidente trabalhava como operário numa fábrica de plásticos em Espinho. Não voltou ao emprego. “Não consigo fazer esforços, não posso ficar muito tempo de pé, o lado direito está mais atrasado, não recuperou totalmente”. Acredita que foi o seu optimismo, o bom humor e a força de vontade que o salvaram.
Raquel e Ion sobreviveram a graves acidentes de viação. Passam as semanas no centro de reabilitação - que, nestes casos, faz uma avaliação dos impactos nas funcionalidades afetadas pelos acidentes, estuda o potencial de cada pessoa e define um plano de recuperação o mais completo possível para a reintegração no mercado de trabalho. “Não faz sentido que estas pessoas fiquem sozinhas e entregues a si próprias”, afirma o diretor da instituição, Jerónimo de Sousa. A intervenção passa pela optimização das potencialidades de cada um, por minimizar os efeitos nas diversas funcionalidades – físicas, emocionais, psicológicas -, e por apoiar a integração na família, na sociedade, no trabalho. “É preciso uma nova atitude face a esta questão. É preciso acreditar que há vida para além de um acidente, que um acidente pode ser o início de uma nova vida”, diz Jerónimo de Sousa. Na sua opinião, este fenómeno tem sido pouco valorizado pela sociedade: “Temos um modelo muito fatalista e resignado. Um acidente de viação é visto como uma fatalidade intransponível. E esse discurso fatalista e resignado focaliza-se excessivamente nas incapacidades e na reparação financeira”. E agora, o que vou fazer à minha vida? É esta resposta que os profissionais da instituição de Gaia querem dar a cada caso. (...)
In: Público
Sem comentários:
Enviar um comentário