Muitas crianças nascem com problemas desconhecidos. Inibição em socializar, défice de atenção ou ausência de afecto. Testemunhos de pais e psicólogos, que nos alertam para um mundo (ainda) em fase de descodificação, num encontro promovido pela Associação Caleidoscópio.
Entre as quatro paredes de uma sala cheia, levanta-se o véu e todos compreendem o óbvio: que há meninos sem uma deficiência estampada no rosto, mas que têm diagnósticos que a sociedade ignora. Asperger, DAMP, Síndrome de Williams e um calafrio que varre a audiência com o nome de perturbação reactiva da vinculação.
Por momentos, tudo funciona, ou seja, pouco continua a funcionar, mas o discurso é entendido e aceite. Porque não é necessário fundamentar que a birra não é mimo, é mesmo autismo, ou que a falta de concentração na sala de aula não é preguiça, mas sim défice de atenção, motricidade e percepção (DAMP). Assim se explicaram pais, pediatras e psicólogos no encontro que a Caleidoscópio organizou este fim-de-semana na Fundação Engenheiro António de Almeida, no Porto.
"A culpa é dos pais"
Gonçalo aparece feliz na apresentação que a mãe expõe no auditório. Com a irmã mais nova, vestido de palhaço, com um olhar doce em bebé, divertido na praia. Se pudesse escolher, diz a mãe, "o Gonçalo jogava a bola ou corria na praia todo o dia". Gonçalo ouve a mãe da assistência, calmo e concentrado. Gonçalo tem 11 anos e é um caso de défice de atenção, motricidade e percepção. O que quer dizer que não parece prestar atenção ao que se diz ou a detalhes tem enormes dificuldades de concentração. A mãe deste menino ainda não arrisca em falar num final feliz. Como será a adolescência e a idade adulta, o que lhe reserva o futuro? Apesar de tudo, Gonçalo está bem na escola, tem uma família unida e empenhada em ajudá-lo, tem todos os apoios educativos necessários às suas especificidades. Mas antes disto, a mãe teve que ouvir afirmações que jamais esquecerá: "Esta criança é um deficiente mental e a culpa é dos pais", "Nunca vi nada assim, não sei o que lhe faça" ou "Oh mãe, se a senhora o consegue aturar e a professora também, não lhe dê nada [medicação]". Todas ditas da boca de profissionais de medicina.
Como uma cassete que se rebobina e volta a passar. Bebés aparentemente normais, que chegam aos três anos sem falar ou com enormes comprometimentos na linguagem. Diagnósticos confusos, percursos sinuosos, obstáculos na escola. Miguel Palha, pedopsiquiatra, fundador da Associação Diferenças, e que presta apoio clínico na Associação Caleidoscópio, no Porto, insiste na evidência: "Sempre que uma criança não fala correctamente aos 2 anos, tem que ser vista por um pediatra do desenvolvimento." Mesmo que os profissionais de saúde acalmem as ansiedades dos pais com o tradicional "ele vai desemburrar". Porque, como afirma Miguel Palha, "em 80% dos casos até desemburram, mas em 20%, não".
"Chegar a casa era um inferno"
Cristina Dantas está nervosa. Rodrigo vai fazer 11 anos e é "uma criança muito meiga e muito fechada". Foi a coberto desta reserva que os pais só ficaram a saber, no final do primeiro período do primeiro ano da escola, que ele tinha sido colocado na sala das crianças com paralisia cerebral. "A professora dizia que não conseguia trabalhar com o meu filho", recorda. E o que se faz quando, mesmo após um contacto com os apoios educativos, se insiste no erro? Queixa à DREN e, depois desta, à Inspecção-Geral da Educação. Rodrigo passou de diagnóstico em diagnóstico até chegar ao défice de atenção e hiperactividade, com dislexia e disgrafia. Actualmente, não tem uma única negativa na escola, os tempos em que "chegar a casa à noite era um inferno" estão mais amaciados. Ainda que Cristina não consiga equilibrar a revolta do acontecido.
Os afectos parecem compensar todos os sofrimentos. Por isso é que as palavras do psicólogo Emanuel Pereira circulam como gelo sobre os ouvintes. Emanuel é psicólogo numa instituição para rapazes e foi lá que recebeu um menino muito especial. Perturbação reactiva da vinculação é o nome científico da deficiência que faz com que seja imune a sentimentos ou afectos. Algo que se transformou numa psicopatia sem retorno, que o faz praticar maldades sem arrependimento. Mas, como refere o psicólogo, "a terapia é bem mais importante do que o diagnóstico". Por isso, afirma, tentam reforçar os afectos para que "no futuro, possa assaltar uma casa, mas não mate ninguém". Este menino foi abandonado à nascença, terá sofrido maus tratos, não restabeleceu vínculos e foi adoptado aos 3 anos, aparentemente tarde de mais. Uma encruzilhada sem final feliz.
Sofia adora conversar
Existem também exemplos como os do Frederico e a mãe, Francisca. Frederico tem Asperger, muita dificuldade na socialização com os seus pares, na escola. Depois das curvas e contracurvas iniciais, chegou ao 8.º ano com boa concentração, a respeitar as regras da sala de aula e com resultados muito positivos na escola. Claro que a gramática é mais fácil do que a interpretação e é um facto que continua a passar os intervalos "ao telemóvel com a mãe". Mas não mente, tem um sentido elevado da justiça, é dedicado e leal às amizades e sente-se feliz na companhia da irmã mais nova, com quem "a socialização é muito boa".
Com pena, Sofia só descobriu que sofria de síndrome de Williams aos 16 anos. Até aí, a família assistia, confusa, a certas estranhezas. Exemplo: nunca ter reprovado e mal saber assinar o nome. Sofia é óptima com as novas tecnologias e adora conversar. A síndrome de Williams dá-lhe um aspecto facial um pouco diferente do comum e uma apetência sadia para a conversa. Adora água, aprendeu a falar inglês a ver televisão, começa a entender-se com a escrita, tem 19 anos, é "uma adulta meiga e feliz". Afirma a irmã e ela sorri ansiosa por conversar.
1 comentário:
Estou a fazer um trabalho para o mestrado que estou a tirar sob o tema "Educação Especial - Educação de afectos". Não estou a conseguir encontrar bibliografia. Pelo conteúdo do seu blog interessa-se por matérias ligadas à educação especial. Será que me pode ajudar?
cristinagomesvieira@gmail.com
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