segunda-feira, 20 de agosto de 2018

“Usar umas aplicações para os meninos estudarem a tabuada não é ser inovador”


Foi sua a ideia de fazer esta entrevista via Skype. Além de “fã da tecnologia”, Rui Lima, 41 anos, é professor do 1.º ciclo e diretor pedagógico do Colégio Monte Flor, em Carnaxide. É também um inovador, no sentido do termo. “A tecnologia não pressupõe inovação, pressupõe uma ligação ao mundo em que vivemos, mas isso não é ser inovador, é estar ligado ao mundo real. A forma como usamos a tecnologia é que pode ser muito inovadora ou não.” Como professor, gosta de ensinar usando kahoots, é a favor dos telemóveis na sala de aula, mas tem consciência das suas limitações, para ser usado na criação de conteúdos.

Colaborou com a Direção-Geral de Educação nos projetos ASPECT, eQNet, Etwinning, Creative Classrooms Lab e Co-Lab. E o trabalho na área da inovação pedagógica não passou despercebido. Recebeu o prémio Microsoft Innovative Educator Expert em 2011, 2013, 2014, 2015 e 2016. Em 2017, partilhou algumas das suas ideias no livro “A escola que temos e a escola que queremos” mas, se pudesse, já lhe fazia algumas atualizações. Em entrevista ao EDUCARE.PT, Rui Lima lembra que a educação não pode alinhar em modas, sem antes refletir sobre elas. Mesmo que as modas ditem que é preciso aprender programação ou substituir os manuais pelos tablets.

Educare.pt (E): A tecnologia é vista ora como a chave para o sucesso educativo ora como o distrator do foco dos alunos nos estudos. Em que é que ficamos?
Rui Lima (RL): Ficamos a meio caminho, entre as duas. Sou fã da tecnologia. Mas, nos últimos anos, tenho reparado que, apesar do potencial incrível da tecnologia para a aprendizagem, existem muitos obstáculos. Às vezes, a nossa infraestrutura nas escolas não está preparada para fazer determinadas atividades que dependem só da tecnologia. Quando a tecnologia falha, é preciso ter um recurso sem tecnologia. Em todo o caso, o foco nunca pode estar na tecnologia, não é a panaceia para todos os males do ensino.  

Muitas vezes, a tecnologia ajuda os alunos a fazerem aprendizagens e aquisições importantes de conhecimentos e competências. Outras vezes, é um fator distrator. Temos uma geração que tem uma facilidade muito grande com a tecnologia, mas nem sempre têm o mesmo à vontade quando ela está direcionada para a aprendizagem. Por isso, é no meio caminho entre as duas opções que me situo.    

E: Com o Plano Tecnológico da Educação, os programas e.escola e e.escolinha, em 2008 e nos anos seguintes, as escolas foram equipadas com computadores, portáteis, ligação à Internet e quadros interativos nas escolas. Olhando para trás, esse programa fez sentido?
RL: Fez todo o sentido. Para muitos dos professores e alunos, o primeiro contacto que tiveram com a tecnologia passou mesmo pelos Magalhães, pelo e.escolas e pelos quadros interativos nas salas de aula. Quase 10 anos depois as coisas já estão obsoletas. O problema da tecnologia também é esse. O investimento é muito grande, não pode ser feito de uma vez e depois, durante um intervalo temporal tão grande, não haver mais nada. Faz com que a maior parte dos equipamentos que estão nas escolas já não funcionem corretamente. O Plano Tecnológico da Educação foi um passo muito importante na simplificação de processos, até extra escola. Basta pensar no número de famílias que passou a entregar o IRS online quando tinha o Magalhães. Isto mostra o acréscimo da tecnologia em muitas coisas.

Houve muitos erros na forma como se colocaram os dispositivos e os equipamentos nas escolas. Muitos professores não os dominavam. Enquanto professor do 1.º ciclo utilizei muito o Magalhães, mas na grande maioria das escolas os portáteis serviram para os meninos se divertirem em casa ou levar para a escola, mas só para jogarem. O processo criativo não saiu nada beneficiado com isso. Os computadores na sala de aula só fazem sentido se for para promover competências. Se for para os meninos jogarem, pode ser divertido, mas não precisavam daquele equipamento, que tinha muitos recursos para a aprendizagem. Seja como for o programa foi muito vantajoso. Fui fã dessas medidas e continuo a ser. Não apostar na tecnologia é mantermo-nos desligados do mundo que nos rodeia.   

E: Foi considerado pela Microsoft um dos professores mais inovadores do mundo. Inovar é ensinar através da tecnologia?
RL: Decididamente que não. Transmito cada vez mais a ideia de que podemos ter a sala repleta de tecnologia e sermos completamente tradicionais ou podemos ter só post-it e canetas na nossa mesa e ser muito criativos e inovadores na forma de trabalhar com os alunos. A tecnologia não pressupõe inovação, pressupõe uma ligação ao mundo em que vivemos, mas isso não é ser inovador, é estar ligado ao mundo real. A forma como usamos a tecnologia é que pode ser muito inovadora ou não. Esse é um dos grandes cavalos de batalha que tenho tido na disseminação da inovação. Usar umas aplicações para os meninos estudarem a tabuada não é ser inovador. Posso pôr os meninos a aprender a tabuada com um jogo de cartas; não preciso da tecnologia e não serei menos inovador por isso.

E: Os smartphones entram na sua sala de aula?
RL: Entram, mas sempre após um processo muito negociado com os alunos. O facto de os alunos levarem o telemóvel para a sala de aula não é inovador. Pode ser inovador o processo de negociação das regras para a utilização dos dispositivos. Sou a favor da utilização do telemóvel na sala de aula, apesar de trabalhar com alunos do 1.º ciclo que não têm telemóvel ou têm mas fica em casa. Reconheço, no entanto, que o telemóvel tem algumas condicionantes se for usado como ferramenta para a aprendizagem. É bom para fazer pesquisas; posso ser muito criativo usando-o para fazer projetos de fotografia ou vídeo, mas é ainda muito limitado no que toca à criação de conteúdos. Para isso, um computador ou um tablet funcionam sempre melhor do que o telemóvel.

O telemóvel funciona muito bem para atividades como kahoots, como responder a questionários, atividades que não são propriamente muito inovadoras, porque os alunos estão apenas a ter um papel passivo. O professor pergunta e eles respondem. A grande mudança que tem de ser feita é o aluno deixar de ser só esse sujeito passivo na sala de aula, que utiliza o smartphone para responder a perguntas do professor, e passar a ser ele a criar as próprias perguntas para fazer aos outros alunos. Pôr os alunos a criarem kahoots para os outros colegas já é ser inovador. E também é possível criar kahoots no telemóvel, mas não é muito prático estar a escrever e ter de ir buscar imagens. Nesse aspeto, creio que o telemóvel ainda tem limitações.  

E: As tecnologias permitiram estreitar as relações entre professores e alunos, fora da escola. Os professores podem ser “amigos” dos seus alunos nas redes sociais?
RL: Eu sou amigo dos meus alunos no Facebook. Mas, para que isso seja assim, tenho alguns cuidados com o que escrevo e o que publico. Trabalho com alunos do 1.º ciclo, mas muitos deles têm computador e perfil nas redes sociais, apesar de não terem idade para tal. Recordo-me de um aluno me dizer que no Facebook tinha mais um ano do que eu. Devemos ter algum cuidado, no entanto, algumas coisas saem mais facilitadas [deste estreitar de relações]. Dou, muitas vezes, um exemplo de como a escola mudou e as interações entre professores e alunos mudaram, neste caso, não com o Facebook mas com o Skype: Tinha uma aluna que queria trazer para a escola um coelhinho e, numa quinta-feira à tarde, estava eu numa pizzaria, manda-me uma mensagem, por Skype, a perguntar se amanhã podia levar o coelhinho para mostrar à turma. Respondi, imediatamente, que sim. No dia seguinte, ela levou o coelhinho. Se não houvesse tecnologia, na sexta-feira é que me perguntaria se poderia levar o coelhinho. Teria de esperar sábado e domingo. E só na segunda-feira é que levaria o coelhinho. Percebe-se, nesta situação, o benefício da tecnologia, mas também porque é que os alunos, hoje em dia, têm mais dificuldade em esperar. Tudo tem de ser imediato. Estas mudanças de postura, de comunicação, têm coisas positivas e negativas, mas é assim o mundo em que vivemos, não vamos andar a combater contra ele.

A “mudança”

E: A sociedade acalenta esta ideia de que a escola tem de mudar porque os alunos também mudaram. Acha que este é um motivo válido para a mudança?
RL: Há vários fatores para que a escola tenha de mudar. Um deles é o facto de os alunos serem muito diferentes do que eram há 10 anos. Sou professor desde 2001, portanto, em 17 anos houve mudanças incríveis na forma de os alunos se comportam, de interagirem com os colegas e com os professores. Se os alunos mudaram, a escola não pode permanecer igual. Mas essencialmente, a escola tem de mudar porque a forma como está organizada não respeita a diversidade entre os alunos, não respeita as diferentes inteligências dos alunos. A escola continua muito focada na capacidade ou nas inteligências lógico-matemática e linguística; todas as outras são relegadas para segundo plano. Continuamos a ouvir dizer que os bons alunos são os que têm boas notas nas "áreas nucleares", seja lá isso o que for.

Acho muito engraçado que, em Portugal, se coloque a questão de que os bons alunos são os que são bons a Matemática e, atualmente, a figura mais importante do nosso país ser um desportista. Passamos sempre ao lado até do que é a nossa realidade. Não desvalorizando os alunos que são brilhantes a Matemática e a Português, também não podemos desvalorizar os que são bons noutras áreas.         

E: Afinal, o que está a faltar para termos uma escola voltada para o século XXI?
RL: Já estamos no século XXI há alguns anos! (risos) A escola ainda uniformiza muito, ainda está muito virada para a cultura do teste e da penalização do erro. Evidente que não podemos ficar contentes quando erramos, mas são os erros que nos levam a melhorar. O desporto é um bom exemplo disso. Eu fui desportista, joguei futebol amador e aprendi sempre muito com os meus erros. Aprende-se muito com os erros, mas a escola ainda penaliza demasiado as falhas. Ora, isso já não se ajustava nem ao século XX. Estando no século XXI, é hora de mudar o paradigma: preocuparmo-nos mais com a criança e não tanto com o conteúdo, com o programa.

É evidente que há conhecimentos básicos, não estou a desvalorizá-los, mas o conhecimento, hoje em dia, está acessível de outra forma. Consigo aceder ao conhecimento de modo mais simples, através da Internet. A competência que temos de ter é a de olhar para a Internet e perceber o que são factos reais e fake news, informação fidedigna ou não fidedigna. Essas é que são as competências para o século XXI. Uma das competências do século XXI é precisamente o pensamento crítico, olhar e ser capaz de refletir se o que se lê faz sentido ou não.

E: Quando a escola promover esse pensamento crítico, podemos dizer que já está voltada para o século XXI?
RL: Quando estivermos voltados para o século XXI, já precisamos das competências para o século XXII e XXIII. O mundo muda cada vez mais depressa. Ainda há dias lia um artigo no World Economic Forum sobre as profissões que estão em ascensão, e a maior parte delas  - tirando a enfermagem e os cuidados de saúde, que estão em ascensão dado o envelhecimento da população - não existiam há 10 anos. Profissões como os “app developpers” ou os “social media managers”. Por isso, a escola vai ter de mudar. Estamos a preparar os alunos para uma realidade que nem eles nem nós sabemos muito bem como será daqui a 10 ou 20 anos.

E: Desde que publicou o livro “A escola que temos e a escola que queremos” em março de 2017, alguma coisa mudou?
RL: A mudança é lenta, porque na educação não podemos andar com experimentalismos. Devemos dar passos seguros e não podemos ir em modas, que é outro receio que também tenho. Dinamizo algumas ações relacionadas com a programação em escolas, e agora está na moda. Toda a gente aposta na programação e acha-se que os alunos vão ser todos programadores. Há uns dias, o pai de uma aluna minha, que é dentista, dizia-me que nunca tinha pensado que teria de perceber de programação, e hoje tem de perceber muito sobre o que é a tecnologia. Essa é a parte da programação que é importante para os alunos; nem todos vão ser programadores.

Não podemos viver de modas, como agora todos os alunos têm de ser programadores, ou agora temos de usar tablets nas escolas e acabar com os manuais. Se pensarmos no peso que os manuais têm nas costas da criança, vemos que é mau, mas e as outras questões de manuseio do livro, de escrever no livro, que são muito diferentes de escrever num tablet? Não gosto de estar a fazer revoluções para daqui por um ano, ou dois, perceber que isto não estava bem feito. A transformação tem de ser gradual. Não vamos acabar com tudo o que era do século XX para pôr em prática coisas do século XXI, mesmo sem saber se elas vão resultar.    

E: No dia 16 de maio foi conhecido o nome do vencedor do Global Teacher Prize em Portugal. Este tipo de concursos traz alguns benefícios ao sistema educativo?
RL: Sim, traz, pelo menos por causa da visibilidade nos média que é dada ao trabalho dos docentes. O aspeto mais positivo do Global Teacher Prize é precisamente o reconhecimento. Passar regularmente na televisão exemplos de professores inovadores que estão a fazer a diferença nas suas escolas é muito importante, porque um dos problemas da classe docente é o pouco reconhecimento que há por parte da própria sociedade. Por isso, estas iniciativas acabam por ser importantes, porque mostram professores cada vez mais preocupados em inovar e em fazer a diferença.

E: O professor César Bona, precisamente um dos premiados pelo “Nobel” da Educação, o Global Teacher Prize, diz que o principal desafio dos professores é fazer com que os alunos queiram ir à escola, gostem das aulas e de aprender. Concorda?
RL: Concordo, mas acredito que é preciso ir um bocadinho mais ao fundo dessas questões e perceber porque é que os alunos gostam ou não gostam de aprender e de ir à escola. Para mim, o aspeto mais importante é a relação emocional que existe entre o professor e os alunos. Quando não há relação emocional, não há empatia, vai ser impossível o aluno ter um compromisso com a aprendizagem.

Se conseguirmos que haja uma empatia com o trabalho que é feito, com o professor que estabelece uma boa relação pedagógica com os alunos, uma empatia com os colegas e um trabalho colaborativo, isto vai fazer com que os alunos gostem de ir à escola e de participar nas atividades que são propostas. O que remete também para a necessidade de olharmos para a aprendizagem não como um processo em que é transmitido ao aluno o que ele tem de saber, mas um processo construtivo em que o aluno vai aprender com um projeto que culmina na execução de um trabalho ou na preparação de um evento.   

E: Tem sempre vontade de ir dar aulas?
RL: (Risos) Não sou diferente dos outros professores. Às vezes também venho maldisposto para as aulas. Também me zango com os alunos e, depois, paro para pensar e percebo que não me devia ter zangado. Mas a minha escola funciona um bocadinho ao contrário. Quando estou menos bem-disposto, a escola até me faz sentir melhor. Isso tem a ver com o próprio ambiente que se vive na escola. Tenho a sorte de ter uma equipa fantástica de colaboradores, auxiliares, professores e pais com quem trabalho. Tenho uma direção que respeita os professores, os pais e é muito colaborante. Esse tipo de liderança é a parte mais importante e está presente em todas as escolas que são inovadoras e apresentam resultados, não nos testes, mas nas aprendizagens.

Fonte: Educare

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