Quando nascemos, a singularidade que nos assiste é igualmente distribuída. A essência que nos constitui enquanto humanidade é um espectro de sabedoria que se vai envolvendo com o ambiente. A genética que trazemos connosco, códigos que nos definem enquanto cor do cabelo, altura, é muito mais do que o que vemos. Será que o que sabemos também se enquadra nesta codificação?
A aprendizagem do mundo envolvente é multissensorial. A forma como aprendemos dependerá também da forma como somos ensinados desde o berço, passando pela escola, até ao mundo adulto. Neste trajeto, a escola ocupa grande parte da nossa vida, senão a nossa vida toda. Porque o que nela aprendemos e vivenciamos reflete-se no que iremos ser, transmitir, agir e relembrar. Compete a quem nos educa que o ensino seja agradável de todas as perspetivas, desde as temáticas que são ensinadas, como são transmitidas e também ou sobretudo como nos relacionamos.
A grande preocupação em cumprir os currículos escolares é um facto inevitável, mas será que dentro do esmiuçar curricular onde nem o professor tem tempo para a criatividade, enquadrar o professor e o aluno enquanto seres individuais poderá ter lugar? Quando o aluno ingressa numa sala de aula com múltiplos alunos para um só professor, de início o processo de conhecimento mútuo é como o que ocorre numa dança –? têm que se acertar os passos. O aluno dança com um professor, mas o professor dança diferentes danças para cada um dos alunos. A linguagem corporal que este enlace exige pode não ser entendida porque por mais que se considere a igualdade na essência, a diferença existe naquilo que nos fomos tornando e moldando através do processo de socialização. A dança que a aprendizagem exige pode ser subtil e os ritmos serão diferentes para cada um. Esta forma de ensino onde um professor se adapta a vários estilos é exigente física e mentalmente, mas para o aluno também o é, quando exige que este se encaixe num panorama que pode não corresponder ao seu ser individual.
Quando o aluno tem dificuldade na aprendizagem de diversas temáticas é facilmente reconhecido e enquadrado num esquema de apoio que deverá funcionar para que a plasticidade cerebral se adeque ao ritmo de ensino. Quando o aluno aprende demasiado rápido diversas temáticas e muitas vezes com enfoque em áreas que nem o próprio professor domina, é assumido como inteligente e por isso todas as outras disciplinas deverão ser integradas da mesma forma e com os mesmos resultados. Estes alunos estão no outro espectro da aprendizagem como se estivéssemos perante uma curva normal. Inteligência é diferente de sobredotação, a criança inteligente pode ser homogénea nas classificações escolares, mas o sobredotado pode ser exímio em determinadas áreas e desinteressado noutras.
Quando o sobredotado surge numa sala de aula ou não é reconhecido por falta de conhecimento de quem o ensina – quer professores, quer pais –, ou é reconhecido, mas o que é oferecido para suprir a sua avidez de conhecimento é insuficiente. A reduzida formação na área da sobredotação leva a que muitos destes indivíduos se desvaneçam numa sociedade que não os compreendeu, integrando áreas que os desinteressam e noutros casos resultando na anulação completa do físico com o suicídio.
A formação na área da sobredotação, assim como noutros espectros de sabedoria, deveria ser levada às escolas. Os pais, professores, educadores de infância deveriam ser ajudados a compreender estes espectros de sabedoria. Quando não atuam, sobretudo na sobredotação, muitas vezes é por desconhecimento. Estará aqui o medo implícito? Talvez. Um pupilo que sabe mais que o mestre requer uma dose desmedida de humildade (aceitar o outro tal e qual ele é) por parte do mestre, mas também por parte do pupilo. O mestre porque pode aceitar o desafio e o pupilo porque pode aceitar a experiencia de vida do mestre. Todos estamos num determinado espectro de sabedoria. Diariamente somos desafiados e desafiamos no conhecimento, é um ato natural e inerente ao ser humano.
A sobredotação é algo estudado há vários anos, mas com fendas no ensino que não sabem como trabalhar com estas mentes. Mentes brilhantes? Talvez apenas mentes como todas as outras, com os seus códigos genéticos que humanamente apenas pretendem o que todos pretendemos – aceitação.
O mesmo sobredotado seria sobredotado noutro ambiente? Provavelmente. O reconhecimento do mesmo é que talvez não. Cabe-nos esta possibilidade de reconhecimento de que existem estas crianças e jovens que muitas vezes se escondem atrás de más notas, comportamentos desadequados, para serem iguais aos pares e assim terem amigos e não serem excluídos. Quanta exclusão irão sofrer estes adultos no futuro? Ou quanta frustração sentirão por não terem seguido a sua grande área de interesse da astrofísica, desporto, artes e tantas outras? Quantos génios do desporto, da educação, da saúde ou da física serão sobredotados e nunca foram reconhecidos? O rótulo não interessa, mas sim a forma como lhes foi permitido o crescimento do seu conhecimento, sem que seja truncado por metas curriculares distribuídas na curva normal. Para aqueles que se incluem no espectro da sobredotação, a progressão poderá ser adequada se os mesmos forem reconhecidos pela comunidade educativa. No caso dos alunos sobredotados, o estímulo e o desafio constante são essenciais, porque da mesma forma que a plasticidade neuronal se está a integrar nos que necessitam de estímulo para a aprendizagem, o sobredotado necessita de manter o interesse.
Ser sobredotado não é algo que seja motivo de regozijo familiar ou do próprio; ser sobredotado é alguém cuja essência nasceu igualmente singular como todos, mas que por características inerentes ao próprio se foi desenvolvendo num espectro de sabedoria mais incisivo. O não reconhecimento destas crianças e jovens por parte da comunidade educativa e sociedade em geral faz com que o desinteresse prime antes da excelência e o que poderia ser um currículo de notas máximo torna-se num enredo de negatividade de resultados. Muitas vezes são alunos propensos ao bullying pela sua dificuldade de socialização. Os temas de que gostam são diferentes e não têm quem os escute. Os pares escolares falam de temas “próprios” da idade quando estas crianças e jovens demonstram uma maturidade e sabedoria em determinadas áreas difícil de acompanhar pelos próprios professores. Este sentimento de não pertença por parte do sobredotado pode contribuir para quadros depressivos com as consequências inerentes.
Se deveriam existir escolas, exclusivamente, só para sobredotados? Isso só iria acentuar a diferença. O sobredotado sofre com esta incompreensão do seu estado de sabedoria e maturidade num corpo que ainda deveria brincar. E apenas pretende que seja integrado. Mas se os pares não falam a sua linguagem e muitas vezes os ostracizam pela “diferença”, como integrar?
Neste aspeto que envolve a sociedade, cabe também à escola que abraça a multiplicidade de saberes criar estratégias para que a sobredotação se integre num espaço dedicado a uma curva bastante normal. Algumas estratégias já são adotadas como clubes de ciência, palestras que as crianças e jovens sobredotados realizam para alunos e/ou professores ou transição de ano prevista na lei. Também a permissão para assistir às aulas de anos mais avançados permitiria manter sempre o estímulo ativo, porque a sabedoria na sobredotação tende a crescer se for bem acompanhada. Senão será infrutífera toda esta essência e singularidade.
Vera Silva
Pediatra e Investigadora em Ciências da Cognição e da Linguagem do Instituto de Ciências da Saúde da Universidade Católica Portuguesa
Fonte: Público
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