Começava o estio a aquecer quando, no habitual pacote de legislação de final de qualquer ano letivo que se preza, surgiu a portaria n.º 223-A/2018, de 3 de agosto, que, a pretexto de regulamentar aspetos da chamada flexibilidade e autonomia curricular, veio introduzir alterações na forma de funcionamento dos Conselhos de Turma dos 2.º e 3.º ciclo do Ensino Básico, ao que posteriormente se veio a acrescentar a portaria 226-A/2018, de 7 de agosto, para o Ensino Secundário.
Desde cedo se percebeu que as modificações em causa pretendem funcionar como uma resposta aos problemas verificados com a greve às reuniões de avaliação dos meses de junho e julho. Na prática, a nova legislação pretende passar a letra de lei algumas das determinações mais polémicas de duas notas informativas (de 11 de junho e 20 de julho) da diretora-geral dos estabelecimentos escolares, Maria Manuela Pastor Faria, por contrariarem a prática há muito consolidada sobre o funcionamento dos Conselhos de Turma.
Perante as críticas que se levantaram, o secretário de Estado João Costa, que assinou a portaria em causa, surgiu (6 de agosto) a protestar que se estavam a fazer “interpretações abusivas” e recusou as acusações, sublinhando que o diploma veio apenas "clarificar" que o conselho de turma está sujeito ao CPA, que "tem hierarquia legislativa sobre outros instrumentos legais, tais como as portarias". Adiantou ainda que “não há aqui nenhuma reação à greve, nenhuma tentativa de impedir greves, não há rigorosamente nada disso. Há apenas uma clarificação que era devida e fazia falta".
A estas declarações há que replicar no plano político e no jurídico. No plano político, basta questionar o secretário de Estado sobre o que levou à necessidade da “clarificação” de que, anos a fio, ninguém sentiu necessidade. É óbvio que foi a recente greve às avaliações, como o próprio admitiu logo a 12 de junho quando afirmou que “a lei já prevê que se uma reunião não se realizar porque falta um professor, deve ser marcada nova reunião no prazo máximo de 48 horas”, após ser inquirido sobre a nota da DGEstE do dia anterior que remetia para a portaria 243/2010, de 10 de agosto, para o Despacho Normativo 1-F/2016, de 5 de abril, e para o Código do Procedimento Administrativo.
No plano jurídico, passemos aos factos que desmentem a tese de que tudo está como sempre esteve e apenas se procedeu a uma “clarificação”:
1. De acordo com a portaria 223-A, no art. 35.º, surge a designação de “Conselhos de Avaliação” que nunca apareceu em qualquer diploma anterior. A portaria 243/2010 (art. 19.º) e o despacho normativo 1-F/2016 (art. 23.º) identificam claramente o “Conselho de Turma” como o órgão que procede à avaliação dos alunos no 2.º e 3.º ciclo do Ensino Básico. E nos n.ºs 7 e 8 do art. 23.º é explicitado que “sempre que se verificar ausência de um membro do conselho de turma, a reunião é adiada, no máximo por 48 horas, de forma a assegurar a presença de todos [e] no caso de a ausência a que se refere o número anterior ser superior a 48 horas, o conselho de turma reúne com os restantes membros, devendo o respetivo diretor de turma dispor de todos os elementos referentes à avaliação de cada aluno, fornecidos pelo professor ausente”. Curiosamente, na portaria 226-A/2018 a designação passa a ser (art. 34.º) a de “Conselho de turma de avaliação”. É meu entendimento que a designação agora criada se destina a que, em disputas jurídicas futuras, se argumente que este “órgão” é diverso de um Conselho de Turma, na aceção corrente até agora.
2. Quanto ao que se segue no artigo em causa da portaria 223-A, em especial do n.º 5 ao n.º 7, sobre o quórum a respeitar nas reuniões dos “Conselhos de Avaliação”, há contradições em relação a legislação ainda em vigor. O decreto-lei 137/2012 (Regime de Autonomia, Administração e Gestão Escolar), no seu art. 44.º, n.º 1, c), apresenta o “Conselho de Turma” como a designação do órgão que assegura o “acompanhamento e avaliação do trabalho a desenvolver com os alunos” e no n.º 3 é explicitado que é nesse órgão que é “discutida a avaliação individual dos alunos”. Já com este Governo em funções, o decreto-lei 17/2016, de 4 de abril, procedeu a um aditamento ao decreto-lei 137/2012, no qual se inclui (art. 24.º, n.º 1) que “na avaliação das aprendizagens intervêm todos os professores envolvidos, assumindo particular responsabilidade o professor titular de turma, no 1.º ciclo, e os professores que integram o conselho de turma, nos 2.º e 3.º ciclos do ensino básico e no ensino secundário”. Ou seja, não pode ser a portaria do secretário de Estado João Costa a contradizer o que está num diploma que “tem hierarquia legislativa sobre outros instrumentos legais, tais como as portarias", para citar o próprio governante.
3. Mas a portaria introduz outra alteração que demonstra que existe algo mais do que uma “clarificação” e que é algo no sentido da supressão do pouco que permanece de procedimentos democráticos nas escolas. No seu n.º 8 afirma-se que “o parecer e as deliberações das reuniões dos conselhos de avaliação devem resultar do consenso dos professores que as integram”. Isto amputa de forma clara a formulação corrente sobre esta matéria, desde logo o recente e já citado despacho normativo 1-F/2016 que determinava (n.ºs 4 e 5 do art. 23.º) que “quando se verificar a impossibilidade de obtenção de consenso, admite-se o recurso ao sistema de votação, em que todos os membros do conselho de turma votam nominalmente, não havendo lugar a abstenção e sendo registado em ata o resultado dessa votação”, sendo que “a deliberação é tomada por maioria absoluta, tendo o presidente do conselho de turma voto de qualidade, em caso de empate”. A partir da nova portaria desaparece o recurso à votação, mantendo-se apenas a hipótese de “consenso” que não se percebe se significa uma unanimidade ou maioria tácita.
4. Na ausência de articulado específico sobre a forma de votação, caso se recorra ao CPA, entramos num domínio novo, pois ele prevê formas de votação das deliberações (art. 31.º) que são estranhas ao funcionamento atual dos Conselhos de Turma. Porque deliberar sobre as capacidades de um aluno para transitar ou não de ano ou ciclo de escolaridade é formular “um juízo de valor sobre comportamentos ou qualidades de pessoas” e, nesse caso, tais deliberações (n.º 2) “são tomadas por escrutínio secreto, devendo o presidente, em caso de dúvida fundada, determinar que seja essa a forma para a votação”. O que pode transformar qualquer proposta de classificação mais problemática num procedimento bem mais complexo do que o que tem sido prática corrente. Não esquecendo que no artigo 35.º (n.ºs 1 e 2) se prevê que “os membros do órgão colegial podem fazer constar da ata o seu voto de vencido, enunciando as razões que o justifiquem (...) e aqueles que ficarem vencidos na deliberação tomada e fizerem registo da respetiva declaração de voto na ata ficam isentos da responsabilidade que daquela eventualmente resulte”.
Se as reuniões dos tais “Conselhos de Avaliação” são para realizar mesmo de acordo com o CPA, podemos ter aberto a porta a mais situações que até agora ninguém considerava. É o caso dos poderes atribuídos ao presidente da reunião no n.º 4 do artigo 21.º do CPA, pois prevê-se que ele “ou quem o substituir, pode reagir judicialmente contra deliberações tomadas pelo órgão a que preside quando as considere ilegais, impugnando atos administrativos ou normas regulamentares ou pedindo a declaração de ilegalidade por omissão de normas, bem como requerer as providências cautelares adequadas”. Hipótese meramente teórica? Olhem que não.
Terá João Costa, no seu esforço por apagar um fogo (analogia sazonal), aberto um inesperado alçapão? E, já agora, não seria boa ideia deixar-se de vitimizações e operações de spin mediático quando os factos são o que são e não outra coisa, devendo ter a coragem para assumir o que assinou?
Paulo Guinote
Fonte: Público
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