Uma das tendências mais marcantes dos debates sobre Educação nos últimos tempos tem passado pela interrogação sobre quais devem ser as competências dos alunos, as escolas e as salas de aula para o século XXI, bem como por propostas de reformulação do currículo apresentado como “tradicional” para o adaptar aos novos tempos da era digital. Apesar de enroupadas numa retórica pretensamente “humanista”, muito do que agora se debate se baseia em conceções economicistas e mecanicistas da Educação, que menorizam a dimensão humana em todo o processo de ensino e de aprendizagem, como se o elemento humano fosse quase acessório, seja o dos docentes (são “facilitadores” da aprendizagem ou meros transmissores “dos conhecimentos numa lógica de simplificação” como referiu um participante num recente encontro de professores na Madeira ), seja dos alunos (cujo desempenho, enquadrado numa lógica de sucesso obrigatório, quase se torna um fator secundário na sua avaliação).
A transformação da Educação (enquanto função social do Estado estruturante para um futuro concreto e não mítico) e do sistema de ensino em variáveis de fórmulas destinadas a ser medidas e avaliadas pela eficácia financeira e pela demonstração estatística do sucesso, tem feito avançar de forma consistente uma conceção desumanizada da Educação, através de um combate cerrado a características que a definem como uma das áreas em que as especificidades do Humano mais se revelam. Não apenas pelo seu papel de preservação, transmissão e evolução do Conhecimento, mas também pelo facto do ato pedagógico não se poder reduzir a um automatismo em que a máquina lança informação sobre recetores passivos, sem qualquer verdadeira interatividade.
Da mesma forma, o atual ataque ao chamado “currículo tradicional” tem sido feito a partir de trincheiras muito claras, com uma estratégia muito agressiva de desqualificação das “disciplinas tradicionais”, com destaque para as Humanidades, apresentando-as como áreas destinadas à promoção da “memorização” de informação “enciclopédica” (nas palavras de um governante), sem que isso se traduza em “competências para o século XXI”.
A transformação da Educação (enquanto função social do Estado estruturante para um futuro concreto e não mítico) e do sistema de ensino em variáveis de fórmulas destinadas a ser medidas e avaliadas pela eficácia financeira e pela demonstração estatística do sucesso, tem feito avançar de forma consistente uma conceção desumanizada da Educação, através de um combate cerrado a características que a definem como uma das áreas em que as especificidades do Humano mais se revelam. Não apenas pelo seu papel de preservação, transmissão e evolução do Conhecimento, mas também pelo facto do ato pedagógico não se poder reduzir a um automatismo em que a máquina lança informação sobre recetores passivos, sem qualquer verdadeira interatividade.
Da mesma forma, o atual ataque ao chamado “currículo tradicional” tem sido feito a partir de trincheiras muito claras, com uma estratégia muito agressiva de desqualificação das “disciplinas tradicionais”, com destaque para as Humanidades, apresentando-as como áreas destinadas à promoção da “memorização” de informação “enciclopédica” (nas palavras de um governante), sem que isso se traduza em “competências para o século XXI”.
ATENAS VS ESPARTA?
A situação que vivemos de combate pelo domínio do currículo do Ensino Básico lembra uma espécie de luta entre o modelo educativo ateniense, baseado na Filosofia e no culto do Espírito (incluindo as Ciências e a Matemática, sem descurar o corpo e as áreas mais técnicas), e o modelo espartano, assente no culto do corpo, da força e do seu utilitarismo guerreiro.
A primeira disciplina a ser trucidada nestas “guerras do currículo” foi a Filosofia, menorizada no Ensino Secundário perante outras áreas que associo mais à promoção de estilos de vida do que a ensinar a pensar e muito menos criativamente. É para mim impensável que um aluno possa entrar num curso superior na área das Ciências Sociais e Humanas sem que a Filosofia faça parte do seu currículo obrigatório para esse acesso. Em boa verdade, a Filosofia, como disciplina estruturante do pensamento, crítico, criativo ou outro, deveria ser considerada obrigatória para qualquer candidato à Universidade, mas parece que isso é cada vez mais tido como arcaico.
O alvo seguinte, ao nível do Ensino Básico, tem tentado centrar-se na História, que se gosta de apresentar como coisa só de memorização e cheia de coisas inúteis para o presente. O cerco tem tido avanços e recuos, mas não tem parado, beneficiando de algumas inimizades de proximidade com posições chave na definição do chamado “desenvolvimento curricular”. Se perguntarem aos governantes se isto é assim, negarão e poderão mesmo dizer que eles são os maiores defensores das Humanidades e até devem ter alguma História do Círculo de Leitores nas estantes para confirmar a sua devoção. Filosofia e História são disciplinas “malditas” para os cultores do Agora, do Futuro, do Homem Novo Saudável e Tecnológico a quem não interessa como aqui chegámos e detestam que alguém lhes relembre que a fatiota agora desempoeirada é velha e, pior, que se tenha a capacidade para o demonstrar sem a wikipedia à mão.
Não me espanta, pois, que nas competências que querem para os alunos do século XXI esteja ausente a dimensão da Memória. Competências que privilegiam o imediatismo utilitário, relegando para o domínio da “inutilidade” as disciplinas e os conhecimentos “do século XIX”, esquecendo-se que, como escreveu Nuccio Ordine, “é nos meandros das atividades consideradas supérfluas que podemos sentir o estímulo para pensar um mundo melhor, para cultivar a utopia de conseguir atenuar, quando não eliminar, as disseminadas injustiças e as penosas desigualdades que pesam (ou deveriam pesar) na nossa consciência” e que é nos períodos de crise que mais precisamos de resistir à tentação do utilitarismo através das atividades que permitem “salvar-nos da asfixia [e] transformar uma vida insípida, uma não-vida, numa vida fluida e dinâmica, orientada pela curiositas em relação ao espírito e às coisas humanas”.
Nem me espanta que dois docentes de Motricidade Humana escrevam, numa parceria com a Direção-Geral da Saúde, que “um cidadão ativo é alguém que adota um estilo de vida saudável, ou seja, uma vida participada, ocupada, com qualidade e bem-estar, e que pugna empenhadamente pela generalização dessas condições a todos os seus concidadãos, implicando uma atitude que se opõe ao sedentarismo, desocupação, degradação e mal-estar” , confundindo o que é a cidadania num Estado democrático, retirando-lhe qualquer das componentes que sempre fizeram parte do que é a essência da vida activa na polis ateniense.
A situação que vivemos de combate pelo domínio do currículo do Ensino Básico lembra uma espécie de luta entre o modelo educativo ateniense, baseado na Filosofia e no culto do Espírito (incluindo as Ciências e a Matemática, sem descurar o corpo e as áreas mais técnicas), e o modelo espartano, assente no culto do corpo, da força e do seu utilitarismo guerreiro.
A primeira disciplina a ser trucidada nestas “guerras do currículo” foi a Filosofia, menorizada no Ensino Secundário perante outras áreas que associo mais à promoção de estilos de vida do que a ensinar a pensar e muito menos criativamente. É para mim impensável que um aluno possa entrar num curso superior na área das Ciências Sociais e Humanas sem que a Filosofia faça parte do seu currículo obrigatório para esse acesso. Em boa verdade, a Filosofia, como disciplina estruturante do pensamento, crítico, criativo ou outro, deveria ser considerada obrigatória para qualquer candidato à Universidade, mas parece que isso é cada vez mais tido como arcaico.
O alvo seguinte, ao nível do Ensino Básico, tem tentado centrar-se na História, que se gosta de apresentar como coisa só de memorização e cheia de coisas inúteis para o presente. O cerco tem tido avanços e recuos, mas não tem parado, beneficiando de algumas inimizades de proximidade com posições chave na definição do chamado “desenvolvimento curricular”. Se perguntarem aos governantes se isto é assim, negarão e poderão mesmo dizer que eles são os maiores defensores das Humanidades e até devem ter alguma História do Círculo de Leitores nas estantes para confirmar a sua devoção. Filosofia e História são disciplinas “malditas” para os cultores do Agora, do Futuro, do Homem Novo Saudável e Tecnológico a quem não interessa como aqui chegámos e detestam que alguém lhes relembre que a fatiota agora desempoeirada é velha e, pior, que se tenha a capacidade para o demonstrar sem a wikipedia à mão.
Não me espanta, pois, que nas competências que querem para os alunos do século XXI esteja ausente a dimensão da Memória. Competências que privilegiam o imediatismo utilitário, relegando para o domínio da “inutilidade” as disciplinas e os conhecimentos “do século XIX”, esquecendo-se que, como escreveu Nuccio Ordine, “é nos meandros das atividades consideradas supérfluas que podemos sentir o estímulo para pensar um mundo melhor, para cultivar a utopia de conseguir atenuar, quando não eliminar, as disseminadas injustiças e as penosas desigualdades que pesam (ou deveriam pesar) na nossa consciência” e que é nos períodos de crise que mais precisamos de resistir à tentação do utilitarismo através das atividades que permitem “salvar-nos da asfixia [e] transformar uma vida insípida, uma não-vida, numa vida fluida e dinâmica, orientada pela curiositas em relação ao espírito e às coisas humanas”.
Nem me espanta que dois docentes de Motricidade Humana escrevam, numa parceria com a Direção-Geral da Saúde, que “um cidadão ativo é alguém que adota um estilo de vida saudável, ou seja, uma vida participada, ocupada, com qualidade e bem-estar, e que pugna empenhadamente pela generalização dessas condições a todos os seus concidadãos, implicando uma atitude que se opõe ao sedentarismo, desocupação, degradação e mal-estar” , confundindo o que é a cidadania num Estado democrático, retirando-lhe qualquer das componentes que sempre fizeram parte do que é a essência da vida activa na polis ateniense.
A DESINTELECTUALIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO
A “Escola” no seu modelo contemporâneo foi criada para ensinar aos indivíduos o que não era possível aprenderem em casa ou no seu ambiente social mas que lhes era necessário para acederem ao que agora se chamam “competências superiores” e a novas funções relevantes para a sociedade e a economia. A Matemática, as Ciências, a História, a Geografia, a Filosofia, são disciplinas que fazem parte do “núcleo duro” do currículo porque para o ensino é necessário mobilizar um saber que não se encontra sempre na cozinha, na sala, na rua ou nos centros comerciais d’agora ou mesmo nas fábricas e oficinas d’outrora.
A Escola surgiu da necessidade de ensinar aos indivíduos o que os métodos e ambientes tradicionais não conseguiam. Não para ensinar o que lhes agradava ou interessava numa visão imediatista. Em boa verdade, surgiu para ensinar coisas complicadas, difíceis, daí haver quem preferisse não colocar lá os pés e ir lavrar.
Não tenho a certeza de já estarmos numa fase em que esses saberes/conhecimentos se tornaram desnecessários e possam ser substituídos apenas pelo utilitarismo tecnológico, digital e “saudável. Em que o culto da Máquina e do Corpo possa substituir, sem danos, a primazia do Humano e do Espírito na Educação dos futuros cidadãos.
A menos que consideremos que a “mudança de paradigma” seja no sentido do currículo do Ensino Básico se tornar uma espécie de substituição do que deveria ser a socialização num sentido mais amplo do que a escolar. Em que a Escola se substitui à Família e à Sociedade na Educação Integral dos indivíduos. Qualquer conhecedor sofrível de História saberá que essa é a essência de todos os projetos totalitários na Educação, quando se afasta dos saberes ditos “tradicionais” e ocupa parte do seu lugar com as ideologias do momento, disfarçadas de outra coisa.
A menos que a “mudança de paradigma” seja a da substituição do arcaísmo dos saberes “tradicionais” e estruturantes do pensamento pelas meras competências do “saber fazer”, essa forma disfarçada de desintelectualizar a Educação que remete para as teorias de algum pós-modernismo multiculturalista em que “saber fazer” unguentos com ervas da Amazónia é equivalente ao conhecimento requerido para produzir antibióticos.
A menos que a “mudança de paradigma” para o século XXI seja a da desresponsabilização quase total de tudo o que é exterior à Escola em relação à formação dos indivíduos.
A menos que a “mudança de paradigma” para o século XXI queira a formação de indivíduos cujo perfil seja tão difuso e generalista que quando for necessário ir além de “saber fazer” a cadeira só saibam ir em busca do google. JL
A “Escola” no seu modelo contemporâneo foi criada para ensinar aos indivíduos o que não era possível aprenderem em casa ou no seu ambiente social mas que lhes era necessário para acederem ao que agora se chamam “competências superiores” e a novas funções relevantes para a sociedade e a economia. A Matemática, as Ciências, a História, a Geografia, a Filosofia, são disciplinas que fazem parte do “núcleo duro” do currículo porque para o ensino é necessário mobilizar um saber que não se encontra sempre na cozinha, na sala, na rua ou nos centros comerciais d’agora ou mesmo nas fábricas e oficinas d’outrora.
A Escola surgiu da necessidade de ensinar aos indivíduos o que os métodos e ambientes tradicionais não conseguiam. Não para ensinar o que lhes agradava ou interessava numa visão imediatista. Em boa verdade, surgiu para ensinar coisas complicadas, difíceis, daí haver quem preferisse não colocar lá os pés e ir lavrar.
Não tenho a certeza de já estarmos numa fase em que esses saberes/conhecimentos se tornaram desnecessários e possam ser substituídos apenas pelo utilitarismo tecnológico, digital e “saudável. Em que o culto da Máquina e do Corpo possa substituir, sem danos, a primazia do Humano e do Espírito na Educação dos futuros cidadãos.
A menos que consideremos que a “mudança de paradigma” seja no sentido do currículo do Ensino Básico se tornar uma espécie de substituição do que deveria ser a socialização num sentido mais amplo do que a escolar. Em que a Escola se substitui à Família e à Sociedade na Educação Integral dos indivíduos. Qualquer conhecedor sofrível de História saberá que essa é a essência de todos os projetos totalitários na Educação, quando se afasta dos saberes ditos “tradicionais” e ocupa parte do seu lugar com as ideologias do momento, disfarçadas de outra coisa.
A menos que a “mudança de paradigma” seja a da substituição do arcaísmo dos saberes “tradicionais” e estruturantes do pensamento pelas meras competências do “saber fazer”, essa forma disfarçada de desintelectualizar a Educação que remete para as teorias de algum pós-modernismo multiculturalista em que “saber fazer” unguentos com ervas da Amazónia é equivalente ao conhecimento requerido para produzir antibióticos.
A menos que a “mudança de paradigma” para o século XXI seja a da desresponsabilização quase total de tudo o que é exterior à Escola em relação à formação dos indivíduos.
A menos que a “mudança de paradigma” para o século XXI queira a formação de indivíduos cujo perfil seja tão difuso e generalista que quando for necessário ir além de “saber fazer” a cadeira só saibam ir em busca do google. JL
Paulo Guinote
* http://www.jornaleconomico.sapo.pt/noticias/tutela-da-educacao-pede-rigor-na-implementacao-da-flexibilizacao-curricular-182302
** Nuccio Ordine (2016), A Utilidade do Inútil – Manifesto. Matosinhos: Kalandraka, p. 18.
*** https://www.publico.pt/2017/07/09/sociedade/noticia/atividade-fisica-literacia-fisica-cidadania-ativa-1778146
** Nuccio Ordine (2016), A Utilidade do Inútil – Manifesto. Matosinhos: Kalandraka, p. 18.
*** https://www.publico.pt/2017/07/09/sociedade/noticia/atividade-fisica-literacia-fisica-cidadania-ativa-1778146
Fonte: Visão por indicação de Livresco
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