Esta é a história de Miguel e de Sinatra, o seu inseparável amigo, o primeiro cão de assistência de uma criança autista em Portugal. Esta é a história de Mafalda e Daniel, os pais que viram o seu mundo tremer quando receberam o diagnóstico do filho, e que têm uma gratidão imensa pelo labrador que lhes devolveu a esperança. Esta é também a história da jornalista Mónica Menezes, contada pela própria, e de como conquistou a confiança desta família para escrever um livro sobre eles – que chega nesta semana às livrarias, com imagens do fotógrafo António Pedro Santos. (...)
Conheci a família Vaz num campo de futebol no Lagoas Park, em Oeiras. O Miguel, equipamento do Benfica da cabeça aos pés, treinava com a equipa sob o olhar atento do pai, Daniel, e do Sinatra, o seu cão labrador. A mãe ficou a falar comigo na sala de espera e, de vez em quando, o Daniel e o Sinatra metiam-se na conversa.
A Mafalda e o Daniel explicaram-me por alto a história do filho a quem tinha sido diagnosticado autismo aos 18 meses e a relação com o animal que já existia lá em casa quando o Miguel nasceu.
Foi por perceberem que havia uma ligação especial entre os dois, por verem que era Sinatra que acalmava Miguel, por se surpreenderem com as dores e as alegrias que o filho passava para o amigo de quatro patas e por sentirem Miguel mais corajoso e sociável sempre que tinha o cão ao lado, que Mafalda e Daniel começaram a pensar: «E se o Sinatra pudesse estar sempre ao lado do nosso filho? No cinema, no supermercado, num restaurante…»
E se…?
Tirei alguns apontamentos, com a hora do fim do treino a aproximar-se. Subitamente, dei por mim a ficar nervosa. Ia conhecer o Miguel, um menino de 4 anos, óculos azuis, benfiquista, autista.
Até àquele dia, pouco ou nada sabia sobre autismo. Tinha visto o Rain Man [Encontro de Irmãos] e só me lembrava de Dustin Hoffman a contar fósforos no chão.
O Miguel não me quis cumprimentar, mas nada de estranho, afinal devem ser raras as crianças que gostam de dar beijinhos a quem nunca viram na vida.
Depois, lembro-me bem, fez uma birra porque o pai disse que não ia comer hambúrguer onde iam sempre depois do treino. Agora percebo que não era uma birra, não era uma forma de dizer que não gosta de ser contrariado, era apenas o quebrar das rotinas com que o Miguel não conseguia lidar.
Tal como eu, foram muitas as vezes, confidenciou-me a Mafalda depois, que quem os observava achou que o filho era um menino mimado e que os pais não tinham mão nele.
Mas não é essa a história do Miguel, do Sinatra, da Mafalda e do Daniel. Quando tudo ficou acertado para eu escrever o livro, estivemos juntos mais de uma dúzia de vezes. Entrevistei sempre os pais em separado e guardei para o fim a conversa com o Miguel.
A Mafalda sabia os pormenores todos, tinha as datas todas gravadas na cabeça, todos os momentos, bons e maus. Sempre falou sem pena de si própria, sem pena do filho. Lembro-me quando ela disse que tinha sido um alívio saber o diagnóstico. Fiquei intrigada. Mas fazia sentido, sim.
Depois de meses sem perceberem o silêncio que se tinha instalado na sua família, o desconforto do Miguel, o mundo distante que ele estava a criar, sim, era um alívio saber o diagnóstico e pôr mãos à obra.
Sempre calma, sempre com um tom de voz sereno, aquela mãe foi-me contando toda a sua história. Chorou uma vez e também por uma vez perdeu o fôlego a contar todos os episódios por que passaram para transformarem o Sinatra no primeiro cão de assistência de uma criança autista em Portugal.
A maior parte dos encontros ocorreu na casa da família. Eu, a Mafalda e o Sinatra sempre, sempre, sempre perto de nós, sempre a trazer-me os brinquedos preferidos, sempre a exigir-nos atenção. Só era diferente quando o Miguel estava em casa, aí ele só tinha olhos para o seu menino, para as novas conquistas, para as brincadeiras, para as novas conquistas
– «Olha, mãe, já lavei os dentes sozinho!»
Sempre achei piada à diferença de atitude do Sinatra se estava com ou sem o dorsal. Ou seja, se estava ou não a «trabalhar». Sem «farda» é um doido bem-disposto e muito beijoqueiro. Com «farda» é o funcionário do ano, sempre a desempenhar da melhor forma possível as suas tarefas.
As conversas com o Daniel foram diferentes das que tive com a Mafalda. Mais descontraído, mais brincalhão, mas também sempre sem pena de si próprio. A voz só perdeu energia quando falou da cumplicidade do Miguel com o Sinatra e do quanto deve ao seu labrador por ter agora um filho que fala e brinca como todas as crianças.
Só quando o livro já estava quase terminado, quando o Miguel já não olhava para mim como uma estranha, fui «entrevistá-lo». Assim mesmo, entre aspas, porque foi uma conversa divertida, enquanto tentávamos construir um carro dos bombeiros da Lego. Entre uma hélice e o piloto, um assento e umas luzes, o Miguel foi-me dizendo o seu nome completo, o que gosta de fazer com o Sinatra e porque é que o seu cão é tão especial.
O Miguel nunca soube do seu diagnóstico. Felizmente, e porque a Mafalda e o Daniel são teimosos, o autismo foi descoberto tão precocemente que as terapias foram duras, mas eficazes.
Hoje pode dizer-se que praticamente todos os sinais de autismo estão dissipados, e se há momento que não esqueço desde que conheci esta história, é o dia em que a Mafalda me telefonou a dar a boa-nova.
A batalha ainda não tinha chegado ao fim, ainda não era altura de baixar os braços, mas já se podia respirar de alívio. O caminho era, a partir daquele momento, cada vez menos tumultuoso.
O caminho que contou sempre com o carinho que só os animais sabem dar sem pedir nada em troca e que contou com a persistência de dois pais que, perante o decreto-lei nº 74/2007, de 27 de março – que consagra o direito de acesso das pessoas com deficiência acompanhadas de cães de assistência a locais, transportes e estabelecimentos de acesso público –, lutaram para o filho se tornar uma criança ainda mais feliz com o seu cão ao lado. Fosse onde fosse.
Durante seis meses fez parte da minha rotina falar com a Mafalda, o Daniel, o Miguel e o Sinatra. Aliás, mesmo depois de o livro ter sido entregue, continuamos a falar, a querer saber da vida uns dos outros. A verdade é que foi a mim que abriram o coração, foi comigo que partilharam momentos difíceis da sua vida e eu, como mãe, já não ouvia cada palavra apenas com um interesse profissional, mas sim com o interesse de quem quer contar e assistir a uma história com final feliz.
No fim, o melhor desta minha história com a família Vaz é simples: é o abraço que o Miguel já dá quando me vê, é o embrulho de papel que escondia um anel e que guardo numa gaveta a dizer «prenda da Mónica», escrito com uma letra tosca, de quem está a aprender a formar palavras, mas que quer agarrar o futuro com toda a energia e alegria possível. E guardo a confiança que a família depositou em mim para contar não uma história de um menino autista, mas sim a história de uma amizade especial de um menino especial com o seu cão especial.
Fonte: Notícias Magazine
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