Fábio Daniel chumbou no 5.º ano. Uma, duas vezes. Ainda fez 6.º, mas acabou por desistir, quando tinha uns 12, 13 anos. Agora, com 24, fala como se o período que decorreu entre o início e o fim da adolescência, que viveu num dos bairros sociais do Porto, não existisse. O que é que fizeste quando saíste da escola? A resposta é breve: “Nada”. Quer falar do que aconteceu depois de aos 22 ter entrado no Arco Maior, o projeto que salva as crianças que caíram por entre as malhas da escola. Foi por causa dele que voltou a estudar e que começou “a encarar a vida destemidamente”.
O Arco Maior não é uma escola. E também não é uma alternativa às escolas já existentes. É provável que nesta sexta-feira o coordenador daquele projeto e especialista em Educação da Universidade Católica do Porto, Joaquim Azevedo, insista nesta ideia.
Terá oportunidade de intervir, durante a cerimónia de formalização do apoio financeiro de Alexandre Soares dos Santos, do Grupo Jerónimo Martins, ao projeto lançado em 2013. E tem feito sempre questão de que isto fique claro: o Arco Maior aparece quando tudo o resto falha, quando a exclusão definitiva das crianças e dos jovens está a um passo, quando “eles já abandonaram a escola e foram abandonados por ela”.
Nasceu no Porto, onde há centenas de jovens em situação de abandono escolar sinalizados pelas Comissões de Proteção de Crianças e Jovens em Risco, mas podia ter nascido noutra cidade em que eles também existem. É “um local e um tempo que oferece a quem já caiu por entre malha de todas as escolas e centros de formação da cidade o tempo e a oportunidade de se reencontrar e recomeçar”, descreveu Joaquim Azevedo no relatório sobre o primeiro ano de atividade do Arco Maior.
Já tinha havido vários arranques em falso, quando o projeto se iniciou, em 2013, envolvendo, para além da Universidade Católica do Porto, a Santa Casa da Misericórdia, que ofereceu as instalações; o Ministério da Educação e Ciência (MEC), que cedeu os professores; o Instituto de Emprego e Formação Profissional, que pagou aos formadores; e vários mecenas que asseguraram o pagamento de equipamentos e despesas de funcionamento.
A ideia inicial era que abrangesse jovens com idades compreendidas entre os 15 e os 18 anos, em situação de abandono escolar efetivo. Mas estes só chegarão neste ano letivo. Naquele primeiro ano, o MEC determinou que deveriam ser acolhidas apenas pessoas com 18 anos ou mais. E foi com base nessa regra que, com a ajuda das Comisssões de Proteção de Jovens em Risco e instituições de apoio social, foram selecionados e convidados a participar no projeto socioeducativo 20 rapazes e raparigas. Em comum, para além de terem abandonado a escola sem completar o 9.º ou mesmo o 6.º ano de escolaridade, tinham o facto de fazerem parte das 24% de pessoas da cidade do Porto que vivem em bairros sociais e “ilhas”, espaços que concentram fenómenos de violência quotidiana, tráfico de droga e pobreza, como os caracteriza Joaquim Azevedo.
Na casa do Arco Maior, aqueles 20 jovens, entre os quais Fábio, comprometeram-se a fazer um percurso de formação de 30 horas por semana, ao longo do equivalente a um ano letivo, recebendo, caso tivessem sucesso, a respetiva certificação escolar. As áreas nucleares da formação seriam Linguagem e Comunicação, Matemática para a Vida, Inglês, Cidadania e Empregabilidade, complementadas com as práticas oficinais de Restauro, Restauração e Cozinha, Artes e Ofícios e Tecnologias de Informação e Multimédia. O objetivo era ensiná-los, sim, mas promover, também, a sua autonomia e a inserção social.
No final do ano letivo, havia apenas três baixas: “um desistiu, um foi para o estrangeiro e outro foi detido”, pode ler-se no relatório. Dos restantes, dez transitaram e continuaram em formação no ano seguinte; e sete atingiram os objetivos definidos para aquele período: três obtendo a certificação do 6.º ano e inscrevendo-se para o passo seguinte; e quatro concluindo o 9.º ano.
Os dados relativos ao ano letivo 2014/2015 (em que a equipa do Arco Maior trabalhou com 29 jovens) também deixam adivinhar casos de sucesso e de insucesso. Nos estudos, mas não só: uma pessoa abandonou o projeto depois de um furto naquela casa, outra viu suspensa a frequência no Arco Maior pelo tribunal, depois de ter praticado atos de violência sobre uma companheira que participava no projeto e com quem namorava.
“O Arco Maior não é uma varinha mágica que muda bairros, famílias, situações de pobreza e de exclusão”, escreveu Joaquim Azevedo no relatório que enviou para o MEC, em 2014. Alguns dos jovens que passaram pelo projeto, no entanto, falam como se fosse.
“Mudou a minha vida”, dizia, esta semana, Bruno Filipe, de 20 anos, a horas de iniciar uma semana de estágio do Curso de Cozinha e Pastelaria no Hotel da Música, no Porto. Bruno, que tem como colega no novo curso outro ex-formando do Arco Maior, refere-se à maneira como os professores ensinam e à sua “imensa paciência”, mas, principalmente, ao facto de ali ninguém ter “desistido” dele.
“Por exemplo, no Arco eu também faltei, como fazia na escola normal. Tinha arranjado uma namorada e estava a ser difícil conciliar as coisas. Mas eles não desistiram de mim. Procuraram-me, fizeram-me voltar, conversaram comigo, importaram-se, importaram-se mesmo. Acreditaram que eu podia ser alguém”, resume. Agora, explica, também ele acredita nele próprio. E apesar de às vezes ser assaltado por dúvidas - "Três anos é muito tempo e na nova escola também já faltei..." - acredita que em 2018 terá a equivalência ao 12.º ano e uma habilitação profissional.
Bruno inaugurou o projeto, à semelhança de Fábio, que completou o 9.º ano em abril e está a aguardar vaga num curso de Turismo “para começar mais uma jornada, desta vez até ao 12.º ano”. Também este fala da "importância" do Arco e dos professores na sua vida. “Quando uma pessoa se sente sem força e sem vontade, se alguém acreditar e depositar toda a sua fé nessa pessoa, ganha-se uma confiança e uma autoestima muito forte, e isso era coisa que eu não tinha em mim antes do Arco Maior”, explicou, numa conversa através do Facebook.
Como Bruno, refere-se às faltas às aulas e ao facto de os professores os procurarem. Por o fazerem e pela maneira como o fazem: “Reparamos na sinceridade deles, porque isso dá para ouvir na voz deles e também se lê nas mensagens deles”.
Sim, não é teatro, explica nesta quinta-feira Isabel Lagarto, uma das professoras coordenadoras do projeto, enquanto aguarda na fila para comprar o passe de transportes públicos para “os meninos”, na companhia de duas jovens do Arco Maior que, a seguir, há de acompanhar ao médico. Não sabe quando acabará o dia: “Aqui não temos outra hipótese senão envolvermo-nos profundamente. Ou era assim ou não servia de nada estarmos aqui”, comenta.
Este ano, o Arco Maior acolhe, pela primeira vez, crianças mais novas e talvez seja diferente, diz Isabel Lagarto. Mas, pelo menos com os mais velhos, não costuma haver exceções: “Chegam-nos muito castigados pela vida, muito desgastados, não esperam compreensão nem carinho. Normalmente, há um momento em que nos querem contar as suas vidas, as coisas menos boas que fizeram. E é nessa ocasião que eu aproveito para lhes dizer: “Para mim, o teu passado não existe, estamos a partir do zero. De bom e de mau, só me interessa o que fizeres a partir daqui”. Também lhes diz que não agradeçam. Fá-los crer - e é verdade, assegura - que vê-los felizes é a única coisa que lhe importa.
O sentimento de proteção ali é tão forte, conta Joaquim Azevedo, que alguns dos jovens fazem por retardar a saída faltando a algumas aulas, demorando, de propósito, a atingir os objetivos. Isso, apesar de os professores que fazem parte do projeto se desdobrarem para os apoiar e encaminhar nos passos seguintes (a procura de emprego, para uns, ou a continuação dos estudos, para outros).
Fábio diz que não é o caso dele, que é verdade que dantes “não tinha autoestima”, mas que agora já não tem medo. Escolheu o curso de Turismo porque é dos que têm mais saída no mercado de trabalho, explica, e está ansioso por começar: “O Arco deu-me a chance de encarar a vida destemidamente, vou agarrar este novo desafio com unhas e dentes”. Diz que o faz pelos pais. E também por ele.
Fonte: Público
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