Temos assistido na última década a um esforço bastante consistente e com resultados no sentido de, em nome de um conceito truncado de liberdade de escolha, desmontar progressivamente a rede escolar pública do ensino não-superior.
Esse esforço tem-se traduzido em medidas que, de um modo claro ou mais encoberto, retiram eficácia e qualidade a essa rede, enquanto se mantêm situações de exceção e privilégio em nichos de interesses particulares no setor que permanecem quase intocados ou que, perante a fortíssima contração do investimento na rede pública, ganharam imenso em termos comparativos. Tudo graças a um trânsito opaco de personagens que não encontram qualquer obstáculo ético em ter estado ontem num gabinete ministerial, estarem hoje como consultores de empresas privadas e amanhã a apresentar-se como especialistas ao serviço de grupos parlamentares a estudar “reformas” futuras. Que acusam o ministério de ter sido dominado pelos interesses corporativos dos professores, que na maior parte dos casos lutam pela justa remuneração pelo seu trabalho, enquanto outros lutam pela acumulação de excedentes a distribuir pelos sócios.
A análise poderia concentrar-se em números, mas entrar nessa lógica é empobrecer um debate que deve ser de “ideias” e “princípios” como os defensores de certa “liberdade de escolha” gostam de afirmar. Poderia comparar-se a redução dos custos com a rede pública, sob a justificação da redução do número de alunos, com a manutenção dos subsídios às parcerias público-privadas que se perpetuam, com ligeiros retoques de cosmética. Poderia mesmo comparar-se o número de escolas públicas que são obrigadas a revelar, em nome da transparência, todos os dados sobre o contexto socioeconómico dos seus e as escolas privadas ou público-privadas que o fazem. Até se poderia fazer a contabilidade dos alunos com necessidades educativas especiais nas escolas públicas e os que têm autorização para “escolher” as escolas privadas que se orgulham de dominar os rankings.
Mas, como referi, prefiro ir ao plano das ideias mais “sistémicas” sobre a lógica da organização, em liberdade, de uma rede pública, ou serviço público que é uma designação que alguns preferem, de ensino universal ao serviço de um desenvolvimento equilibrado do país.
E nesse plano, concedo que a ideia da “liberdade de escolha” me atrai sobremaneira e que a gostaria imenso de ver concretizada no terreno, assim os titulares governativos tivessem a coragem para a implementar na rede escolar pública existente, não lhes impondo soluções únicas e espartilhos que a impedem de fazer diferente, fazer melhor e “fazer” em liberdade tudo o que poderiam para concorrer em plano de igualdade com outras redes de estabelecimentos que funcionam de acordo com a sua própria lógica e sem se ralar com todas as portarias, despachos ou circulares emanadas deste ou daquele diretor geral ou de serviços.
Gostaria de ver uma verdadeira “liberdade de escolha” das populações e famílias a quem os decisores políticos, em conluio central e local em torno de envelopes financeiros, retiraram a presença de escolas do 1º ciclo de proximidade, de uma forma que levou a que as suas comunidades ficassem cada vez mais repulsivas e incapazes de combater um país tão ou mais assimétrico que no século XIX.
Gostaria de ver uma verdadeira “liberdade de escolha” no modo como a rede escolar se organiza, sem a imposição de mega-agrupamentos baseados em cálculos de “economias de escala”, que se traduziram na poupança de alguns horários de docentes e levaram outros a desempenhar funções em diversas escolas, prejudicando as suas condições de trabalho e o serviço prestado aos alunos.
Gostaria de ver uma verdadeira “liberdade de escolha” na forma de funcionamento interno das escolas, não as obrigando a adotar um figurino único que reduz qualquer pretensão de autonomia que não seja conquistada através dos interstícios da lei e vulnerável a uma qualquer inspeção enviada em dia de mau humor burocrático-administrativo.
Gostaria de ver uma verdadeira “liberdade de escolha” ao nível dos métodos pedagógicos e de trabalho, sem autoritarismos que chegam ao ponto de obrigar as famílias a adquirir montanhas de manuais escolares e materiais auxiliares ou os professores a seguir sebentas de modo a atingir “metas” que não são mínimas a partir das quais há liberdade, mas sim grelhas de indicadores específicos. Sem autoritarismos que impõem o mesmo tipo de refeições a todos os alunos, com base no cêntimo mais baixo.
Depois de ver implementadas todas estas “liberdades” numa rede pública de ensino universal e justa, sem escolas públicas de primeira, segunda e terceira ordem, em que a “liberdade” de a recusar e recorrer a outra lógica deve ir a par da rejeição de subsídios públicos para pagar humores privados, estou perfeitamente disponível para discutir outros mecanismos de “liberdade de escolha”, mesmo os que sabemos irem gerar situação de privilégio. Infelizmente, não me parece que isso seja possível num horizonte próximo.
Paulo Guinote
Professor do 2.º ciclo do Ensino Básico
Fonte: Público por indicação de Livresco
Sem comentários:
Enviar um comentário