Quando em março de 2020 a professora Célia Sousa recebeu um contacto de uma empresa israelita para testar um novo equipamento no CRID - Centro de Recursos de Inclusão Digital "foi uma bela surpresa no meio da pandemia", que acabara de ser declarada. A OrCam acabara de lançar o MyEye Read, e procurava quem quisesse testar o dispositivo.
Quando as escolas reabriram, a empresa voltou a contactar o Instituto Politécnico de Leiria no sentido de perceber se haveria alunos que se adequassem ao perfil de embaixadores da marca.
Foi o caso de Joana Gonçalves, 22 anos, uma açoriana que frequenta a licenciatura em Comunicação e Media na Escola Superior de Educação e Ciências Sociais (ESECS). A jovem reunia todos os requisitas: é disléxica, frequenta o ensino superior, e não tem reservas em lidar com os meios de comunicação, até porque é aí que imagina o seu futuro.
Natural da Ilha Terceira, escolheu Leiria para estudar porque sabia que "era uma cidade pequena, mas acessível", longe de imaginar que o IPL integrava um espaço como o CRID. Descobriu-se que era disléxica quando tinha 11 anos, chegada ao 5.º ano de escolaridade. "Sempre senti muitas dificuldades na escola, mas isso não era falado. Depois, acho que os meus pais -- até para me protegerem -- também não me contaram. Até que, no 7.º ano, um professor descaiu-se, e disse que eu tinha dislexia". Estava esclarecido o facto de no 5.º e 6.º andar todas as semanas ir ao psicólogo fazer testes e exercícios. Daí em diante seguiu-se sempre um percurso de repetição: "pode ser um problema da escola, pode ser até da minha região, a verdade é que todos os anos eu tinha que andar a começar do zero, o meu processo nunca tinha seguimento. E depois só começava no segundo período".
Determinada, Joana foi arranjando estratégias para contornar os obstáculos do sistema. De modo que, podendo usar o contingente dos Açores ou o da Deficiência no acesso à universidade, optou pelo segundo, na hora de escolher. Agora, acabou por ser ela a escolhida. No dia em que foi entrevistada pela agência de comunicação da empresa israelita que desenvolveu o produto, deixou a mesma impressão de sempre: "quero fazer alguma coisa pelas pessoas que têm dislexia. Um aparelho como este é raro. Nas escolas, muitos psicólogos não têm formação para lidar com as pessoas disléxicas. E é muito necessário", afirma ao DN. Foi por isso que aceitou ser embaixadora da marca. No dia (...) da entrevistou, Joana Gonçalves tinha em seu poder o equipamento há pouco mais de uma semana. Estava rendida. "Eu tenho muitas dificuldades na leitura silenciosa. E 90% do meu estudo é assim. Por isso, o dispositivo tira a fotografia ao texto e lê para mim, o que me faz perceber. É como se fosse uma pessoa a ler para nós".
O novo equipamento é pouco maior que uma pen. Apontado a um texto, por exemplo, "fotografa-o" e vai ajudar o aluno com dislexia a perceber melhor, nomeadamente a leitura silenciosa. "Permite fazer uma melhor leitura e uma autocorreção", sublinha Célia Sousa, que ao cabo de 20 anos no CRID lembra que um equipamento destes também pode ser usado "por pessoas que tenham baixa visão, e que, por exemplo, num supermercado, não consegue ler os rótulos dos produtos. Aponta o equipamento. Que fará a foto e a leitura. Uma grande vantagem que tem é que não armazena e por isso não terá a memória cheia". O mesmo se aplica até à população idosa, que tem um conjunto de medicamentos para tomar e que muitas vezes se pode baralhar.
Célia Sousa lembra que falamos de "um equipamento um pouco caro (rondará os 1.800 euros), mas tal como acontece com todos os equipamentos deste âmbito, são comparticipados pelo Estado desde que prescritos pelos médicos ou serviços educativos.
Célia Sousa é professora de educação especial e doutorada na área de comunicação não verbal. Já sabia da existência do equipamento, mas também sabia que "era um pouco dispendioso, e por isso não podíamos adquiri-lo naquele momento. De tudo o que já viu, ao longo de uma longa carreira, acredita que está perante um equipamento completamente inovador para os alunos com dislexia. Percebeu-o assim que tomou contacto com ele. "Pensávamos nos nossos alunos que têm dislexia -- como a Joana -- e que para eles seria uma mais valia". Ao todo, frequentam as várias escolas do IPL cerca de 100 alunos com essa característica. Além disso, o CRID recebe muitas crianças das escolas da região a quem dá apoio, sem contar com outras pessoas da comunidade. São cerca de uma centena, entre os dois e os 96 anos de idade.
10% das crianças com dislexia
A chegada do Orcam Read às mãos de Joana Gonçalves aconteceu poucos dias antes da comemoração de mais um Dia Mundial da Dislexia, que se assinalou a 10 de outubro. A propósito, a Associação Portuguesa de Dislexia -- DISLEX -- alerta para a incapacidade das escolas em identificar e acompanhar os alunos com esta característica. Segundo a Presidente da Assembleia Geral da DISLEX, Helena Serra, "o sistema está a falhar às crianças portuguesas".
Em Portugal, cerca de 10% das crianças têm perturbações da aprendizagem relacionadas com a dislexia. Esta é também uma condição que se verifica em 48% dos alunos com necessidades educativas especiais. "Perante estes números, é importante salientar que há ainda muitos casos por identificar. É aqui que o nosso sistema falha, porque este é um problema com origem na formação dos professores, que não prevê este tipo de formação específica de forma obrigatória. Deste modo, muitos casos acabam por ser detetados já numa fase tardia da vida da criança, o que se traduz posteriormente em insucesso escolar, em muita frustração ou até em problemas emocionais", acrescenta Helena Serra.
Fonte: DN
Sem comentários:
Enviar um comentário