A inspeção veio à minha escola – uma escola TEIP, ou seja, localizada num território educativo de intervenção prioritária – e, por ordem do senhor Diretor, fiz parte do grupo de professores a quem foi requerida uma entrevista de cerca de uma hora com duas excelentíssimas senhoras inspetoras do Ministério da Educação.
Hum, que medo! – sussurraram os colegas em geral. Primeiro, também eu senti a preocupação que tamanha responsabilidade implicaria mas depois, com regozijo e talvez alguma inconsciência, pensei: Se querem saber como conseguimos levar a bom porto a tarefa ingrata e tantas vezes inglória de ensinar e avaliar alunos para quem a escola é quase a última das suas prioridades, vou com todo o gosto… Sejam muito bem-vindas! Confesso que fiquei quase feliz. Afinal, havia quem quisesse saber de nós, professores diariamente no terreno, após dois anos infernais de pandemia…
Mas não era bem isso. A reunião visava sobretudo obter informações – factos e exemplos concretos – sobre o processo de avaliação dos nossos alunos, pelo que pretendiam ouvir alguns professores, escolhidos aleatoriamente (segundo me disseram), sobre avaliação. Sim, avaliação. O Projeto Maia – Monitorização, Acompanhamento e Investigação em Avaliação Pedagógica, teve o seu início em setembro de 2019 (embora tenha sido forçado a adaptar-se à situação pandémica) e está a retomar o seu caminho, recuperando assim o tempo entretanto perdido. Talvez por isso, agora estejamos a absorvê-lo, de forma concreta, em Setembro de 2021. Este projeto, pensado, concebido e desenvolvido com o pressuposto de que a melhoria das aprendizagens dos alunos está fortemente relacionada com as práticas pedagógicas das escolas e dos professores, particularmente com as suas práticas de ensino e de avaliação tem, assim, um propósito claro e louvável: contribuir para melhorar as nossas práticas de avaliação e de ensino, levando à melhoria das aprendizagens dos nossos alunos.
Ora, sendo a avaliação um dos processos mais complexos e exigentes da vida de um professor, enchi-me da coragem dos otimistas e preparei-me para responder a todas as questões que me quisessem colocar. E foram muitas… Tantas e em catadupa que, um professor menos experiente e com dificuldades de expressão oral, ter-se-ia provavelmente sentido intimidado. Eu apreciei a possibilidade de discutir com quem sabe de avaliação na teoria mas não faz ideia – ou não quer fazer – da dificuldades e das infinitas especificidades que um processo de avaliação bem feito implica quando tenho – devido aos meus anos de serviço –apenas cem alunos e uma disciplina em vez de, como muitos dos meus colegas, várias disciplinas, vários níveis, múltiplas turmas e muitos, muitos, tantos alunos. Seja como for, concordei plenamente com a necessidade de melhorar o processo avaliativo. Nesta hora inteira de reflexão profunda sobre a escola, os professores e esse bicho papão chamado avaliação, pude perceber que todos podemos fazer mais e melhor.
Esta entrevista pretendia analisar, através da perspetiva docente, a forma como este processo multidimensional que é a avaliação é aplicado na nossa escola. Deste modo, desde questões sobre o currículo, as práticas de ensino, de formação até aos métodos e instrumentos de avaliação, tudo esteve em cima da mesa: como avalio os alunos na disciplina de Português do Ensino Secundário, se e como distingo entre avaliação formativa e sumativa, que retorno dou aos alunos de forma a orientá-los nas suas aprendizagens, quais os instrumentos de avaliação utilizados, que uniformização de critérios de avaliação é possível encontrar entre os diferentes grupos disciplinares, se dentro do mesmo grupo os critérios, instrumentos e métodos de avaliação são os mesmos… Como faz isto, senhora professora e como faz aquilo, senhora professora, não acha que podem fazer melhor isto, senhora professora, e não acha que podem fazer melhor aquilo e o outro e mais aqueloutro? E por aí fora até à exaustão…
Sim, podemos, concordei. É possível sempre melhorar! Especialmente se nos for dado tempo de qualidade para uma reflexão madura e responsável sobre como melhorar as nossas práticas pedagógicas no domínio da avaliação das aprendizagens, se nos derem um número razoável de alunos e de níveis e de turmas e de anos, se perceberem de uma vez por todas que um profissional docente deve ser uma profissional reflexivo e não um fazedor de grelhas que, ajudarão certamente a essa reflexão, mas não são a sua essência. Como tem mostrado – e bem – a investigação científica nesta área, a avaliação pedagógica pode ser um importante fator de combate ao sucesso escolar, ao abandono e às desigualdades, crucial em qualquer instituição de ensino e ainda mais, posso afirmar, nas escolas localizadas em territórios educativos de intervenção prioritária.
Fui para casa, pus-me a pensar e saiu este texto. De facto, a reunião com as excelentíssimas senhoras inspetoras foi produtiva porque formativa. Logo, surtiu o efeito desejado: refletir sobre a avaliação para uma melhor concretização da mesma. Ficou a certeza de que urge melhorar os resultados dos alunos do secundário, especialmente quando neste ano letivo e no próximo não há a desculpa da obrigatoriedade do cumprimento exaustivo dos vastos programas, sendo a nossa prioridade as aprendizagens essenciais. Que melhor oportunidade do que estes dois anos para, na disciplina de Português e em todas as outras, trabalhar de forma interdisciplinar de uma vez por todas, uniformizar critérios de avaliação também entre grupos disciplinares – mantendo obviamente a especificidade de cada área – e definir o perfil exato do aluno que queremos à saída do secundário.
Das muitas questões que me foram colocadas, como faz para que um aluno saiba exatamente o que deve fazer para conseguir sucesso, não lhe parece que ainda há muitos professores que usam os dados recolhidos com a avaliação formativa para a transformação em classificação, e que formação tem em avaliação, senhora doutora?… talvez a que mais me angustiou foi a seguinte: Então se faz corretamente a avaliação formativa dos seus alunos, como explica ainda a existência de classificações negativas nas pautas? Pediram-me exemplos concretos de tudo o que afirmei, de todos os argumentos que defendi. Tinha vários, felizmente. O que mais parece ter chocado as minhas interlocutoras foi a minha tese de que a dificuldade dos alunos em reter informação, por mais simples que aparentemente seja e das mais variadas formas por que seja apresentada, é gritante. Exemplo? – pediram-me. Não será a senhora professora que não está a utilizar o método certo para que essa aprendizagem ocorra? Talvez, talvez, admiti… Mas então, ajudem-me, pedi. Ainda ontem introduzi Pessoa e o Modernismo numa turma de um curso profissional contextualizando-o numa época, num século, em décadas, em anos… Falei, escrevi no quadro, eles escreverem no caderno, viram e ouviram um vídeo e leram no powerpoint a época: séc. XX. Perguntei se sabiam a razão para o dia 5 de Outubro ser feriado nacional. Falei-lhes do rei de Espanha e do Presidente da República de Portugal. Remeti para a data de 1910… Sai da aula convicta de que nenhum daqueles alunos jamais trocaria o século de Pessoa como fazem habitualmente com o século de Camões. Pura ilusão. Na aula seguinte, ninguém se lembrava e, pior do que isso, houve quem avançasse com o século XVII, XVII ou XIX. Contei-lhes esta história e perguntei às senhoras inspetoras o que fariam, como fariam e pedi-lhes que me ensinassem. Não estamos aqui para ensinar, responderam. E tinham toda a razão.
Eis talvez chegada a hora de repudiar o limitativo meio envolvente da escola como desculpa. E, se por exemplo, nos domínio da leitura e da escrita, da educação literária e da gramática podemos ajudar a crescer, não poderemos, todos os professores de todos os grupos disciplinares, apostar no pleno sucesso dos nossos alunos, por exemplo, no domínio da oralidade e da competência para fazer apresentações orais de qualidade? Não pode haver valores negativos na oralidade da língua materna, certo? Mas também não deveríamos aceitar classificações de dez valores neste domínio… Passei o resto do dia e da noite perdida em pensamentos. É um facto que professores reflexivos precisam-se. Mas há momentos em que me sinto numa espiral da qual nunca conseguirei sair. E o que não consegui perguntar foi o que fazer às turmas anestesiadas, com níveis de desempenho e de expetativas tão baixas, especialmente após estes dois anos de pandemia?
Carmo Machado
Fonte: Visão
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