Começar esta reflexão afirmando que o importante na vida não é o ponto de partida nem o de chegada, mas a caminhada realizada, talvez não tenha sido a opção mais acertada. O escritor Álvaro Magalhães, no seu memorável poema “Limpa palavras”, diria a propósito destas palavras que “têm mesmo de ser lavadas, é preciso raspar-lhes a sujidade dos dias e do mau uso”, dada a imensidão de vezes que já foram citadas. A verdade é que olhar para o resultado final, o término do percurso, sem atender à trajetória, é desprezar o mais importante. Há caminhos, caraterizados pela exclusão, que a história da humanidade já nos ensinou onde vão desaguar, embora talvez muitos o desconheçam ou já estejam esquecidos. Dois livros fabulosos, a “Conspiração contra a América” de Phillip Roth e a “A Sétima Porta” de Richard Zimmler, obrigam-nos a uma marcha longa e dolorosa com as suas personagens que, passo a passo, vão sendo mandadas para a borda, para o precipício. Mediante um processo lento e dissimulado, em que há legitimação de discursos e práticas discriminatórias, tudo vai acontecendo de uma forma progressiva e infinitamente penosa para quem é alvo direto de discriminação.
Associei a vida destas personagens que acompanhei através da leitura a um acontecimento verídico recente que me deixou a pensar no quanto é importante deixar de conjugar o verbo “excluir”, nomeadamente na primeira pessoa.
Num final de tarde, um homem de etnia cigana abordou-me no sentido de me pedir boleia para duas mulheres e várias crianças. Depreendi que uma delas seria sua companheira e que, eventualmente, alguns dos mais pequenos poderiam ser filhos. Sublinhou que apenas pedia a minha colaboração de “taxista” para os elementos do sexo feminino e para as crianças. Logo que aceitei o seu pedido, implorou-me também que carregasse uma infinidade de mercadoria, que rapidamente encheu a mala do carro. Para agradecer a minha colaboração, ofereceu-me três pares de meias, que acabei por aceitar, apesar de primeiramente lhe ter deixado claro que o meu “trabalho” não exigia trocas. Imaginava eu que moravam ali perto, pois já os tinha visto passar naquele lugar várias vezes, mas o percurso que tinham de realizar era afinal bem mais longo. De referir que o motivo da minha deslocação era, curiosamente, dar boleia a um familiar próximo, que também precisava de ir para casa. Com o banco traseiro cheio de gente desconhecida e com o olhar constrangido do elemento da minha família que transportava ao meu lado, sentia-me apreensiva e só pensava: “Que alhada!”.
Quando finalmente cheguei ao destino, depois de um desvio significativo da rota que tinha planeado, e os meus passageiros abandonaram o carro, sou confrontada com o comentário do meu familiar: “Ai! Agora não te esqueças de limpar o carro… Traziam máscara?”. Estava tão atarantada que nem sabia responder à questão levantada. Simplificar momentaneamente a vida de crianças e mulheres que, pelo menos na aparência, seriam frágeis e com baixos recursos económicos, justificaria tanta inquietude? Seria motivo para ter tornado este acontecimento secreto, até este momento de partilha, dado que se o revelasse a algumas pessoas próximas certamente me diriam: “Mas tu estás louca? Deste boleia a pessoas de etnia cigana!’”? Se aquela mulher e aquelas crianças não fossem de outra etnia, teria eu hesitado em responder afirmativamente à sua solicitação de boleia?
Ainda bem que aceitei o pedido e que acabei por ficar com as meias, pois sempre que as calço penso na injustiça gerada pela exclusão e na longa caminhada que muitos de nós ainda teremos de fazer para que a palavra “exclusão” fique gasta, esfarrapada e caia em desuso.
Adriana Campos
Fonte: Educare
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