terça-feira, 19 de novembro de 2019

“PODE SER INGRATA A IDEIA DE QUE A SÍNDROME DE ASPERGER É UM SUPERPODER”

Em Portugal, existem cerca de 40 mil pessoas sinalizadas com Síndrome de Asperger. E muitas existirão que, encaixando no perfil, não sabem que o têm. Sendo uma perturbação neurocomportamental de base genética incluída no espetro do autismo, é a sua forma mais ligeira e funcional e, por isso, mais difícil de diagnosticar. Hoje, há mesmo quem discuta se é uma patologia ou apenas uma forma diferente de ser. A jovem ativista ambiental Greta Thunberg encara-o como um superpoder. E talvez seja, nas circunstâncias certas, como ela própria reconhece. Mas para criar as circunstâncias certas é preciso um diagnóstico e uma intervenção adequada.


Shaun Murphy, o cirurgião da série The Good Doctor e Sheldon Cooper, da Teoria do Big Bang, são duas personagens de ficção com Síndrome de Asperger, ambos geniais, que, cada um à sua maneira, ajudam a perceber como é viver com esta Perturbação do Espetro do Autismo. Para eles e para quem os rodeia. Especula-se que outros génios do passado, e do presente, encaixem no perfil.

Greta Thunberg tem o diagnóstico e sobre este escreveu na rede social Twitter, como resposta aos haters que o usaram para a atacar e diminuir: “Eu tenho Asperger e isso significa que às vezes sou um pouco diferente da norma. E – nas circunstâncias certas – ser diferente é um superpoder. #aspiepower”.

Jornais de todo o mundo puxaram para título “Ter Asperger é um superpoder”. Mas não foi bem isso que a jovem disse. É importante ler as suas palavras com atenção. Ter Arperger faz que seja diferente da norma e nas circunstâncias certas ser diferente é um superpoder. Pode parecer a mesma coisa, mas não é.

“Esta representação pode ser ingrata para as pessoas com Síndrome de Asperger”, diz, no entanto, Patrícia Sousa, psicóloga clínica e diretora técnica da Casa Grande, da APSA – Associação Portuguesa de Síndrome de Asperger.

“Para já porque nem todos são génios e depois porque temos um número infindável de pessoas que se identificam [com o diagnóstico], mas que no dia a dia não sentem a sua diferença como um superpoder e podem entrar num conflito brutal. Estas extrapolações têm um lado negativo”.

A chave estará nas circunstâncias certas. O que Greta Thunberg quereria dizer com essa expressão não podemos adivinhar, mas a verdade é que com a intervenção adequada podem ser criadas as circunstâncias certas para que as diferenças deixem de ser uma limitação e possam até vir a ser uma mais valia.

Com este diagnóstico, há mais de 40 mil pessoas em Portugal, sobretudo rapazes, num rácio de uma rapariga por cada cinco rapazes, em média. No entanto, os especialistas são unânimes em considerar que esta diferença não seria tão grande se o diagnóstico não fosse ainda mais difícil nas raparigas, que têm uma maior capacidade de socialização e adaptação.

“É importante percebermos como funcionam para desconstruirmos alguns preconceitos”

Perturbação neurocomportamental de base genética, a Síndrome de Asperger está incluída no espetro do autismo, classificada como a sua forma mais funcional e ligeira, e deve o seu nome ao psiquiatra austríaco Hans Asperger, que a identificou em meados do século XX.

Os “aspies”, como também são chamados, não têm défice cognitivo, pelo contrário, muitas vezes têm uma inteligência acima da média, mas têm características que os distinguem, comprometendo sobretudo a capacidade de comunicação e relação com os outros, a gestão de comportamentos e o controlo das emoções.

Em traços gerais, têm dificuldade em descodificar a linguagem não verbal e os segundos sentidos da linguagem verbal, o que os torna muito literais; têm dificuldade de estabelecer contacto ocular ou fazem-no de forma desajustada; são muito honestos porque lhes falta filtro, o que os leva muitas vezes a ser interpretados como rudes ou inconvenientes; desenvolvem interesses muito específicos e intensos, que por vezes levam ao extremo, o que os torna muitas vezes rígidos e inflexíveis; têm geralmente um discurso elaborado e peculiar que pode soar estranho ou pedante, sobretudo em crianças; têm dificuldade de entender e expressar emoções; precisam de rotina e previsibilidade; podem ter maior sensibilidade a sons, cheiros, texturas e toque; podem ter algumas dificuldades na coordenação motora.

O diagnóstico nem sempre é fácil e não é fiável antes dos cinco anos, mas quanto mais precoce for, mais bem sucedida será a intervenção, porque, explica a psicóloga Patrícia Sousa, permite “que os aspies sejam melhor entendidos e aceites na família, na escola, na própria sociedade. É importante percebermos como funcionam para desconstruirmos alguns preconceitos”.

“Por exemplo, nas escolas, temos professores muito revoltados – como é que eu o faço olhar para mim, estou a dar a matéria e ele não me está a dar atenção nenhuma. Não olhar, para estas pessoas, não é sinónimo de não dar atenção. É fundamental que os professores conheçam a patologia, para adaptarem a abordagem quando têm uma criança ou jovem Asperger na sua sala. O bullying que os nossos jovens sentem parte não só dos colegas, mas também dos professores”, diz.

E quem diz a escola, diz a casa. Patrícia Sousa recebe muitos pais exaustos e frustrados porque já se privam da vida social e em família porque os filhos aos olhos dos outros não sabem estar ou comportar-se.

“Se tivermos um filho do espetro do autismo e esperarmos que num almoço de família ele vá cumprimentar toda a gente com um beijinho, alguma coisa vai correr mal. Para ele isso é desconfortável e a família alargada tem que estar preparada para não criar um juízo de valor. Mas geralmente cria e isso gera uma entropia brutal nas relações. Temos pais que nos chegam esgotados, desgastados, porque nem a própria família alargada entende. Não são só os aspies que têm dificuldades com a empatia. Também há muita falta de empatia em relação a eles. E se isto acontece nas famílias como é que não há de acontecer nas escolas, na sociedade e no mundo empresarial?”

Devolvida a pergunta, a psicóloga não hesita: “trabalhando com os jovens as suas competências sociais e funcionais e dando a conhecer às famílias, escolas e empresas a patologia, as suas especificidades e as estratégias para lidar com ela. Quem me dera a mim, com alguma brevidade, ter que deixar de falar em inclusão. No dia em que não tenha que falar em inclusão é muito bom sinal, é porque as gerações já desenvolveram naturalmente os comportamentos empáticos necessários para lidar com a diferença, seja ela qual for”, diz Patrícia Sousa, que faz um paralelo com as diferenças culturais.

“Todos nós estamos formatados culturalmente. Se pensarmos numa lista de sentimentos e do procedimento adotado perante cada um deles, nós portugueses, sabemos como os gerimos, mas se passarmos para os nórdicos ou os asiáticos ou até os brasileiros, que são um ‘povo irmão’, percebemos que têm formas de expressão, gestão e até de conceptualização do que é o socialmente correto completamente diferente”.

É nesse sentido, de melhor adaptar o mundo às pessoas com Síndrome de Asperger que sentem essa necessidade e vice-versa, que a APSA e o seu projeto Casa Grande trabalham.

Com uma metodologia de intervenção baseada em modelos cognitivo-comportamentais, adaptados à pessoa com autismo e a cada caso em particular, trabalham-se competências sociais, autonomia, gestão de pensamentos e emoções, “para eles utilizarem o recurso cognitivo, mas fazerem leituras adequadas de forma a reestruturarem o seu autoconceito e a sua autoestima, ou seja, a aceitarem-se como são, mas percebendo que, em determinados contextos, se sabem que não vão tolerar determinadas coisas, também sabem que podem atuar de forma adaptada para minimizar o que lhes é ingrato em termos de sociedade e de relação, que pode ser muito desgastante para eles. E isto é alargado a várias situações do dia a dia. O nosso objetivo não é que deixem de ter os seus interesses e de ser eles próprios, mas o de encontrar zonas de conforto e criar a noção de que os pais, a escola, a empresa, os outros, os entendem”.

“Tenho jeito para várias coisas, mas o que quero é ser atriz”

É isso que Vitória, 20 anos, espera. Olhar sério por detrás do sorriso, toda ela é autoconfiança. Chegou à Casa Grande em julho e nestes três meses já aprendeu “montes de coisas que não sabia”.

“Estou a conseguir desenvolver as minhas competências sociais, a fazer amizades novas, que é uma área em que tenho algumas dificuldades, estou a trabalhar a parte motora, que tem melhorado muito, está a correr muito bem”, diz.

A psicóloga Vera Brandão confirma. “Um aspeto em que a Vitória evoluiu bastante foi na confiança em si própria para poder começar a alargar a rede de amizades, porque quando chegou muitas vezes víamo-la no canto, com o telemóvel, e agora já a vemos mais disponível, mais em interação com os outros”.

Fez o secundário no curso profissional de Comércio, depois, nos dois anos seguintes, fez os exames nacionais para entrar em Direito, mas não conseguiu média. Ainda tentou entrar para a Escola Superior de Teatro e Cinema, mas também não foi bem sucedida, o que conta sem frustração aparente. As pesquisas da mãe trouxeram-na até à Casa Grande, que as reencaminhou para o PIN, um centro de diagnóstico e acompanhamento de perturbações do desenvolvimento infantil, de onde regressou, seis meses depois, com um diagnóstico de Síndrome de Asperger.

Na Casa Grande, espera trabalhar as competências sociais e funcionais que lhe permitam entrar no mercado de trabalho. O que gostaria de fazer? Ser advogada? “Não, isso era antes, eu quero mesmo é ser atriz. Tenho jeito para várias coisas, mas como sei que é difícil encontrar trabalho na minha área, acho que será alguma coisa relacionada com comércio”.

Estar sempre em contacto com as pessoas não a incomoda – “sou muito boa a comunicar em público” -, e até já fez um estágio curricular como rececionista que, diz, correu muito bem. Não significa isto que tenha desistido do seu sonho, a representação, daí que esteja a fazer um curso de teatro na LX Factory. “Estou lá há um ano e dou-me bem com toda a gente. É muito fácil. O meu objetivo mesmo é apanhar carga para depois fazer o curso profissional de teatro, que são três anos e já é mais a sério”.

“O otimismo, excesso de confiança e ingenuidade também são aspetos trabalhados na Casa Grande, no treino de competências sociais”, explica Vera Brandão enquanto Vitória se afasta para tirar a fotografia.

“Foi um bocadinho dos dois: as pessoas adaptaram-se e eu também me adaptei”

Enquanto Vitória é recém-chegada, Pedro Noronha, 32 anos, é veterano. Está na Casa Grande desde o princípio, 2014, e de acordo com Piedade Líbano Monteiro, presidente da direção, é um dos exemplos máximos do trabalho que aqui se faz. “Quando aqui chegou, era um miúdo triste e fechado, mas foi fazendo caminho e em 2015 foi o primeiro jovem a entrar em contexto de empregabilidade, na REN. Fez o seu percurso lá, teve um desempenho fantástico, aos fins de semana já combinava programas com os colegas, e quando terminou o contrato, a despedida foi absolutamente comovente. Depois foi para o Santander, onde teve contratos renovados até passar aos quadros, o que aconteceu no início deste ano”.

O Pedro é um cavalheiro. Percebe-se que uma entrevista não é a coisa mais confortável para ele, mas dispõe-se a vencer o desconforto, com uma delicadeza que disfarça o nervosismo.

Está contente por ter ficado efetivo no banco Santander, onde trabalha como administrativo, e olha as dificuldades da mesma forma que os sucessos, objetivamente. “Fui para o Santander, em 2018 e o trabalho era um pouco diferente do que fazia na REN, que era de arquivo. Mas fui conseguindo uma cada vez maior autonomia nas tarefas. E agora também trabalho em open space e ambientei-me bem a lidar com novos colegas e novas situações. Comecei como estagiário e gostaram do meu trabalho e de mim como pessoa e acabei por ficar efetivo. Fiquei contente”.

Dificuldades? “Ter que lidar com mais pessoas e com várias situações ao mesmo tempo. Quando estava a fazer uma tarefa e vinha alguém e intervinha era um pouco complicado, porque é difícil dar atenção a várias coisas ao mesmo tempo, mas acabou por correr bem. Foi um bocadinho dos dois lados, as pessoas adaptaram-se e eu também me adaptei”.

O trabalho trouxe-lhe uma autonomia e responsabilidade com que se sente bem e a experiência de estar com outras pessoas e ter que interagir com elas diminuiu a ansiedade que muitas vezes sentia na relação social.

Quando não está a trabalhar, gosta de andar de bicicleta e fazer caminhadas, mas a fotografia e as aves são a sua paixão. Isso e jogos de computador. Se gostaria de fazer dessas paixões profissão? “Seria um bocadinho uma incógnita. Agora, sinto-me bastante empenhado na área em que estou.”

“Como fazer para que a sociedade dê oportunidade a estes jovens, que têm imensas capacidades e qualidades?”

É por isso que luta Piedade Líbano Monteiro, presidente da direção da APSA e mulher com a qual cinco minutos de conversa bastam para perceber que leva tudo à frente. O filho de Piedade tem autismo, mas depois de um longo percurso a dar-lhe as ferramentas para ser feliz, dedicou-se a trabalhar pelo futuro de jovens com Síndrome de Asperger.

“O meu filho nunca terá um emprego, mas é feliz e marca a vida de todos com quem se cruza, e é só isso que eu quero. Agora, tenho que fazer caminho é pelos outros, porque é isso que ele me ensina”, diz já no fim da conversa, que começou pela dificuldade que é os pais terem de se descascar de si próprios enquanto pais, das suas expetativas, dos seus medos, das suas ansiedades e incertezas, “para nunca desistirem e acreditarem sempre naquela criança ou jovem, que é o seu filho e que é um desafio, como todos os filhos, mas um bocadinho maior”.O projeto Casa Grande, da APSA, nasceu da constatação de pais de jovens com Síndrome de Asperger, de que, por vezes, por muito bons alunos que fossem, por mais cursos superiores que pudessem ter, deparavam-se com um “fosso brutal” entre a vida académica e a casa dos pais e a vida ativa e o mercado de trabalho.

“Como fazer para que a sociedade dê oportunidade a estes jovens, que têm imensas capacidades e qualidades, de as usarem e fazerem o seu caminho? Como ajudá-los a integrar-se, à sua maneira, e a terem uma vida q.b. feliz, q.b. funcional, q.b. autónoma, enquanto cidadãos de direitos e de deveres? Foi para dar resposta a estas questões que criámos a Casa Grande. Mas com a noção perfeita de que isto não se faz à paulada. Não estamos aqui para cumprir quotas”.

Neste momento, a fazer caminho com 50 jovens e respetivas famílias, 20 dos quais já em contexto laboral, o trabalho começa por eles e depois passa para as empresas, que também são preparadas para os receber.

“Antes de a empresa receber um jovem nosso, tem uma formação sobre a Síndrome de Asperger e sobre ele e isso é meio caminho andado para as coisas resultarem. Vale mais do que vinte terapias, porque eles começam a sentir-se realizados, começam a baixar os níveis de ansiedade, porque não há tanta exigência de relação, não são só eles que têm que fazer o esforço de se adaptar, e cria-se um mundo mais previsível, que lhes é essencial”, explica a diretora técnica, Patrícia Sousa.

“A empregabilidade nesta área não é colar função e jovem, é muito mais do que isso, é a empresa saber quem vai receber, é haver no meio uma entidade que faça a mediação e veja quais são as funções que calham com as características destas pessoas, quais são as equipas que estão dispostas a abraçar este desafio, não é este obstáculo, é este desafio, e do nosso lado quem são os jovens com a funcionalidade, a experiência e as características para aquele trabalho. Há este namoro antes do casamento e é fundamental porque a frustração ou algo que corra mal para jovens com esta problemática é um trauma que pode ser brutal e que se não for devidamente acompanhado pode fazê-los regredir e fecharem-se em casa, no computador, que são as suas zonas de conforto”, acrescenta Piedade Líbano Monteiro, que, apresenta com orgulho alguns dos casos de sucesso.

“Temos três jovens na Accenture, um em robótica, outro em programação e outro que deteta problemas informáticos e os resolve. Temos o Pedro, de que já lhe falei, no Santander. Temos o Pedro Dias, descobriu aqui o seu talento para desenho e já tem uma loja online de retratos que é um sucesso e está a ganhar dinheiro com isso. Mas queria deixar isto claro: o nosso trabalho não acaba na empregabilidade. O que procuramos é prepará-los para a vida. E para serem felizes.”

Fonte: Life DN

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