sexta-feira, 8 de novembro de 2019

“As crianças hiperativas precisam de usar fones nos testes”

Mais preguiçosos, mal comportados e mimados pelos pais. Os mitos em torno deste transtorno são muitos. Mas a Perturbação da Hiperatividade e Défice de Atenção (PHDA) está na origem de vários problemas. Por exemplo, as crianças com este transtorno têm mais acidentes domésticos e menos autoestima. Os adultos têm mais problemas profissionais, e maior probabilidade de contraírem doenças sexualmente transmissíveis, devido à sua impulsividade. Até a taxa de divórcios é maior – 2,4 mais vezes. Quem o diz é Luís Augusto Rohde, psiquiatra e presidente da Federação Mundial da doença. O especialista brasileiro, de Porto Alegre, reconhece que, em escolas privadas, no Brasil, os pais pedem que os médicos lhes prescrevam estimulantes para melhorarem resultados.

O que se descobriu de novo sobre o transtorno e que será apresentado no congresso?
Há novos estudos que mostram que há genes que contribuem para a maior suscetibilidade de se ter a doença. Um deles, publicado no fim de 2018, apresenta 12 genes associados à vulnerabilidade ao PHDA. Tínhamos muita expectativa sobre como mapear os genes deste transtorno.

Então vai ajudar no diagnóstico?
Ainda não estamos nessa fase, mas o caminho é esse. Como no caso do cancro de mama, onde esse tipo de testes auxilia o diagnóstico. Mesmo assim, estes genes explicam porque é que em muitos casos começamos por diagnosticar os filhos e percebemos depois que os pais também têm PHDA. Aliás, entre 30 e 40% dos pais de crianças com hiperatividade têm o transtorno. No nosso serviço em Porto Alegre, temos 1.300 crianças diagnosticadas e 700 adultos. Não é raro começarmos uma conversa com uma criança e o pai responder: "Pó, Rohde, isso era eu em criança." Muitas vezes temos de começar a tratar os pais primeiro, para implementar uma rotina na vida destas famílias.

O PHDA é de difícil diagnóstico?
Não há exames. É preciso conhecer os sintomas. A segunda dificuldade é que é uma doença dimensional. Ou seja, com uma infeção de uma bactéria, ou tens a bactéria ou não tens. Já nas doenças dimensionais, como é o caso da hipertensão, é a partir dos sintomas de várias pessoas que defines o que pode ou não causar prejuízo na vida de alguém. Neste caso, a dificuldade é separar o que é um traço normal do que é uma hiperatividade motora excessiva e que causa prejuízo funcional.

Existem balizas?
Existe um estudo, da Escandinávia, que permite perceber que quando tens um determinado nível de sintomas, um adulto, por exemplo, tem mais risco de ter acidentes de carro, por desatenção ou impulsividade. Já a criança tem mais chance de acidentes domésticos. Então começamos a balizar o nível de sintomas necessários no diagnóstico com as dificuldades em atividades importantes do dia a dia.

Não existem exames, mas existem fatores biológicos?
Existem dados de genética que mostram que há uma vulnerabilidade. Além disso, as crianças com PHDA têm uma menor espessura do córtex pré-frontal – parte da frente do cérebro, responsável pelo controlo inibitório e pelas funções executivas – do que as que não têm. Essa parte do cérebro é três anos mais imatura em quem tem PHDA do que em quem não tem. Veja, se tenho um freio inibitório mais imaturo, fico mais agitado e mais impulsivo. Como é que entra aí a desatenção? Para prestares atenção ao que estamos conversando, tens de inibir a conversa dos teus colegas, bloquear pensamentos sobre o teu almoço, etc. Existem N coisas a competir pela tua atenção e é esse filtro pré-frontal que faz a inibição. Mas temos outro estudo que demonstra como isto funciona.

Qual?
Por exemplo, pedimos a alguém para entrar numa máquina de ressonância magnética e ficar pensando na vida. Quando as pessoas são convidadas a fazer isso, ativam determinadas áreas cerebrais, aquilo a que se chama rede neural de repouso. Se pedirmos para que faça uma atividade que requer atenção, vai desativar esse mecanismo e ativar outras áreas frontais. O que vimos é que em pessoas com PHDA, quando lhes pedes para fazerem uma atividade atencional, eles aumentam as áreas da atenção, mas não desligam as outras. Vão trabalhar sempre com ruído dentro do cérebro.

Quais são os maiores mitos relacionados com a hiperatividade?
O primeiro é que o PHDA não existe, que é uma doença inventada. E outro mito é que não existe evidência biológica.

Também se culpam os pais?
Sim, esse é outro mito. Mas em muitos casos os pais ajudam a melhorar. Por exemplo, ao criar um local adequado para a criança estudar sem distração, ao estar ao lado dela enquanto ela estuda. Ou, ainda, ao adaptar o tempo de estudo à capacidade de atenção da criança – em vez de duas horas, blocos de 20 minutos. As modificações ambientais são muito usadas. Na escola, por exemplo, os professores devem dar instruções mais curtas, colocar a criança na primeira fila, longe da janela, e perto do professor. Nos testes, precisam de mais tempo ou até de usar fones para não ouvirem o ruído. Essas estratégias em crianças em idade escolar, 6 anos – que é quando a doença começa a ser mais visível – são eficazes.

Em Portugal, surgiram notícias sobre o aumento da venda do metilfenidato. Existe um excesso de medicação?
Na verdade, um estudo mundial feito para ver qual a percentagem dos pacientes com PHDA no mundo tratados com estimulantes e quantos, sem terem o diagnóstico, são medicados. Os dados iniciais apontam que cerca de 20% a 24% dos pacientes com PHDA estão sendo tratados com medicação. Logo, não há medicação em excesso.

O que significa este aumento?
Que estamos mais alerta. Se olhares em termos de saúde pública, o problema é provavelmente o oposto – e em Portugal não deve ser diferente – é o subdiagnóstico e o subtratamento. A medicação entra naqueles casos em que há gravidade, ou seja, prejuízo de moderado a grave, e quando já se tentaram outras intervenções comportamentais. E até quando o treinamento dos pais – colocação de limites, organização dos locais em casa, reforço positivo – não funcionou. Não é a primeira hipótese, mas isto não quer dizer que em determinadas escolas privadas do Brasil não haja um uso pontual excessivo de medicação.

Porquê?
Tens um ambiente altamente competitivo e os pais ficam mais angustiados e pressionam o profissional de saúde. E, eventualmente, um profissional sem uma boa formação pode fazer um diagnóstico sem muitos dados. Mas isso são situações pontuais.

O que faz o medicamento?
A região córtex pré-frontal é muito regulada por dois neurotransmissores que são a noradrenalina e a dopamina. Por exemplo, quando é que um indivíduo com PHDA funciona? Quando está muito motivado, porque inunda esta área com dopamina e consegue funcionar. Ou quando está sob stress para entregar um trabalho, inunda o córtex com noradrenalina e funciona. A dificuldade desses indivíduos é funcionar em condições normais. O que a medicação faz é regular os níveis de dopamina e noradrenalina nesse córtex.

Num estudo, refere que é possível que os adultos desenvolvam défice de atenção depois de deixaram a casa dos pais?
Se pensarmos que qualquer condição de transtornos mentais é compreendida como resultado de uma interação de vulnerabilidade biológica, genética, e estímulos ambientais, então aqueles indivíduos que tenham uma pequena vulnerabilidade para o PHDA e com uns pais que ajudam, criam regras, regulam, não se nota. Se tiras esse indivíduo da família e o colocas num ambiente universitário, aumentas as exigências e os sintomas começam a aparecer.

Participou no Manual de Saúde Mental – DSM-5. Quais foram as alterações mais importantes?
Foi a adaptação dos critérios para reconhecer melhor os sintomas em adulto. O PHDA não é similar na infância e na idade adulta. Em crianças vemos a hiperatividade motora, em adultos vê-se muito mais a desatenção, a procrastinação e a impulsividade cognitiva. Em adultos, têm menor capacidade profissional, 2,4 vezes mais probabilidade de divórcio, de doenças sexualmente e até maior prevalência de gravidez na adolescência. Mas não podemos colocar rótulos nessas pessoas.

Fonte: CM por indicação de Livresco

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