(A propósito do recente documentário exibido na RTP 2, “Outra Escola”)
O documentário Torre Bela, realizado em 1977 pelo alemão Thomas Harlan, que retrata a ocupação da Herdade da Torre Bela no Ribatejo no pós-25 de Abril, tem uma cena deliciosa. Um dos colaboradores das chamadas (na altura) cooperativas tenta explicar a um agricultor que a enxada dele faz agora parte da cooperativa. O agricultor responde que não, a enxada é dele, que foi ele a pagou. Numa época onde muitas pessoas, especialmente no interior do país desconheciam por completo o que se passava em Lisboa e comiam o pão que o diabo amassou, para terem o seu sustento, alguém os tentava convencer, omitindo o seu esquecimento em partes mais inóspitas do nosso país, que agora tinha de ter, de repente um pensamento avant-garde.
Numa analogia que reconheço não ser demasiada ou imediatamente óbvia faz-me lembrar os professores do secundário. Durante anos os ditos meninos “da” educação especial não chegavam ao secundário. Com a escolaridade obrigatória até ao 12.º ano, a realidade é atualmente bem diferente. De repente, alguém lhes quer fazer ver (normalmente os professores de educação especial) que aqueles meninos têm todo o direito de ali estar. Que há uma espécie de cooperativa onde estes alunos deixaram de ser da educação especial e passaram a ser de todos. E aquela enxada, a enxada dos conteúdos e objetivo final de fazer um aluno brilhar num exame final deixou de ser o objetivo único. Têm agora de fazer adaptações, preencher mais papel e lidar com alunos que “não sabem estar no secundário”.
Mas será este o desígnio de ser professor? Preparar apenas para avaliações finais?
“Obrigar” (este obrigar leia-se, (re)sensibilizar) professores a serem professores não é, atualmente, um contrassenso. É uma necessidade. Há muito que nas escolas o ato de ser professor tem sido relegado para outra dimensão. Não é mito, é realidade. A perda de auxiliares de educação e de pessoal administrativo aumentou as responsabilidades dentro das escolas, colocando as competências dos professores espartilhadas em inúmeras atividades que extravasam claramente as suas funções.
Esta repartição de funções veio colocar como ponto fulcral e quase único no trabalho de aula do professor, o cumprimento de um currículo como fim de percurso anual e objetivo máximo. Este caminho é inúmeras vezes contaminado por alunos que dificultam este processo e que ajudam a criar guetos mentais. Alunos de primeira e alunos de segunda. Estes alunos de segunda recebem um guarda-chuva marcado com um rótulo que lhes sirva e são encaminhados para qualquer apoio “porque deixa de ser problema meu” afinal se não responde ao currículo, (o objetivo máximo) não serve para o meu propósito de professor. Não quero ser mal interpretada. Não falo em passagens administrativas, facilitismo ou insistir em ajudar quem não quer ser ajudado (às vezes a maior aprendizagem é cair para se reerguer de novo). Falo em encarar todos os alunos como “todos os meus alunos” com areias na engrenagem ou não. Com o objetivo máximo de levar ao bom porto de cada um. Não é um percurso solitário, não o deve ser, repercutir uma sociedade assim não faz sentido.
Quando ouvimos numa reunião “Mas o que eu quero saber é se ele faz exame a nível de escola ou exame a nível nacional para saber como trabalhar com ele” ou “Mas este menino então é para fazer avaliação adaptada, é isso?” percebemos duas coisas: A nova função do professor, comandada única e exclusivamente pelos resultados, e o pouco tempo a desperdiçar para ouvir falar e trabalhar com alunos de segunda esperando que alguém lhes diga o que fazer.
Não estou a censurar, estou a revelar uma realidade, uma forma de agir e de pensar perpetuada por anos. A verdade é que há fundamento para esta realidade instituída, mas por estar instituída não quer dizer que seja justa, honesta ou aquilo que um professor deve representar. E é muito fácil entrarmos num funcionamento em modo robot, o trabalho acumulado torna nebuloso o discernimento.
Como podemos modificar então uma realidade tão instituída e tão pouco refletida? A legislação atual, o Dec. Lei 54/2018 de 6 de julho deu um impulso (escrava também das diferentes interpretações realizadas porque há aspetos impossíveis de serem decretados). A nossa posição e afirmação é também uma delas. Recordo-me de uma escola onde trabalhei recentemente, onde numa reunião, o diretor disse sem qualquer pudor “Eu estou a marimbar-me para os exames. Eu quero que todos os alunos sejam ajudados dentro das suas possibilidades”. Foi o escândalo na sala.
Vamos lá clarificar um cliché recorrente mas necessário de ser aplicado mentalmente: Todos os caminhos são legítimos quando feitos com rigor, e rigor significa definir objetivos consoante os pontos fortes e menos fortes do aluno, as suas expectativas e os caminhos possíveis. Não é nivelar por baixo ou fazer o “teste do coitadinho”, é dar as ferramentas de apoio que lhe permita a caixa correta para conseguir ver para lá do muro sempre assente no compromisso mútuo, não há sucesso sem trabalho e ninguém ajuda quem não quer ser ajudado.
A Universidade é legítima, os cursos profissionais são legítimos, todos os percursos são legítimos desde que haja rigor. E adaptar o currículo e a avaliação quando é necessário não é facilitismo, é justiça.
Maria Joana Almeida
Professora de Educação Especial e formadora na Santa Casa da Misericórdia de Lisboa
Fonte: Público
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