sexta-feira, 29 de novembro de 2019

Funções do professor de educação especial... ou inclusiva

O texto que se segue é da autoria de Maria de Fátima Almeida e foi retirado do artigo Como avaliar a prática do professor de educação especial: articular o DL 54/2018, de 6 de julho, com os art.º 16.º e 19.º do Decreto Regulamentar n.º 26/2012, de 21 de fevereiro, publicado no revista Gestão E Desenvolvimento (27), páginas 229 a 255. PDF



O Decreto-Lei n.º 54/2018, de 6 de julho, um dos normativos que mereceu o louvor da Associação Australiana All Means All por ser considerado um dos marcos no caminho da escola e da sociedade para a Inclusão, dá ao professor de Educação Especial um grande protagonismo, muito na linha do previsto no Despacho Conjunto n.º 198/99, de 3 de março, e agora reforçado:

(i) Enquanto dinamizador, articulador (com os restantes intervenientes em todo o processo, papel mencionado, a título de exemplo, no art.º 11º) e especialista. 

(ii) É também no art.º 11.º que fica clara a importância deste professor na operacionalização do Desenho Universal para a Aprendizagem (DUA), afirmando-se, no n.º 4, que “O docente de Educação Especial, no âmbito da sua especialidade, apoia, de modo colaborativo e numa lógica de corresponsabilização, os demais docentes do aluno na definição de estratégias de diferenciação pedagógica, no reforço das aprendizagens e na identificação de múltiplos meios de motivação, representação e expressão”. 

(iii) A legislação prevê para este docente um papel central na implementação de todas as medidas de suporte à aprendizagem e à inclusão no geral (art.º 6.º). O art.º 8.º - medidas universais -, com a redação dada pela Lei n.º 116/2019, de 13 de setembro, prevê agora que “A aplicação das medidas universais é realizada pelo docente titular do grupo/turma e, sempre que necessário, em parceria com o docente de Educação Especial, enquanto dinamizador, articulador e especialista em diferenciação dos meios e materiais de aprendizagem e de avaliação.” Ou seja, fica agora claro que a participação do professor de Educação Especial também tem lugar no âmbito da implementação das medidas universais. 

(iv) Deve ser um dos principais intervenientes da medida seletiva Apoio Psicopedagógico (alínea c), art.º 9.º, no âmbito da qual – como defendemos – deverá trabalhar áreas causais das diversas problemáticas que obstam à conquista de sucesso escolar. 

(v) Na Equipa Multidisciplinar de Apoio à Educação Inclusiva (EMAEI), tem de estar obrigatoriamente um professor de Educação Especial (art.º 12.º); consideramos, contudo, que este número é muito reduzido para a importância que este professor assume no contexto deste desígnio de inclusão, pelo que, e aproveitando a abertura na Lei n.º 116/2019, de 13 de setembro, que prevê no n.º 4 do art.º 12.º que “Os elementos elencados no número anterior podem ser reforçados de acordo com as necessidades de cada escola”, faz sentido integrar mais professores de Educação Especial na EMAEI. 

(vi) O art.º 13.º refere-se explicitamente à presença do professor de Educação Especial no Centro de Apoio à Aprendizagem, um recurso organizacional que a Lei n.º 116/2019, de 13 de setembro, vem esclarecer que não se trata de um espaço previsto para todos os alunos – informação que foi veiculada nas diversas formações sobre este normativo legal -, mas que será voltado para alunos a quem é dada prioridade na matrícula, como referido no ponto 4 desta Lei. 

(vii) São ainda os professores especialistas nas escolas de referência no domínio da visão (art.º 14.º) e para a educação bilingue (art.º 15.º). 

(viii) Para além disso, é referido neste Decreto-Lei que a participação dos centros de recursos de tecnologias de informação e comunicação nas avaliações deve ser articulada, entre outros intervenientes, com o docente de Educação Especial (art.º 17.º). 

O Decreto-Lei n.º 54/2018, num ato de culpa ao qual é alheio, abriu uma dúvida incompreensível: como se subentende que o conceito de Educação Especial cessou agora, substituído pelo de Educação Inclusiva (como se este conceito fosse novo), a designação professor de «Educação Especial» foi substituída, talvez mais numa fase inicial, por professor de «Educação Inclusiva». Esta transferência advém da dificuldade em haver um distanciamento relativamente ao pressuposto anterior, o da Educação Especial versus Educação Regular. Cessando esta dicotomia com o Decreto-Lei n.º 54/2018, de 6 de julho, todos os professores são de Educação Inclusiva. Mantém-se, como sabemos, a designação do nome do grupo de recrutamento de cada professor (Professor de Português, etc.) e, consequentemente, a designação «professor de Educação Especial», até haver, se tal acontecer, necessidade de alterar este termo. 

O Decreto-Lei n.º 54/2018, de 6 de julho, não especifica o papel do professor de Educação Especial muito para além do supramencionado, e o manual de apoio à prática também deixa ao critério de cada escola esta operacionalização. 

Fica, apesar disso, clara a importância que é atribuída a este docente. Ficam, por outro lado, omissas respostas a questões de cariz mais prático, como, entre muitas outras, as seguintes: 

(i) Apesar de, para a aplicação de medidas seletivas (art.º 9.º) e adicionais (art.º 10.º), ser referido que o Diretor da Escola/Agrupamento de Escolas pode solicitar recursos adicionais, se os que existem não forem suficientes – entre eles, subentende-se professores de Educação Especial -, quais são os critérios que justificam esse pedido (número de alunos que estão em acompanhamento por parte deste docente?); 

(ii) Quando se advoga que a intervenção deste docente, e qualquer intervenção em geral, deve ter lugar preferencialmente dentro da sala de aula, está a incluir-se a intervenção especializada que compete a este professor? É que – e talvez, mais uma vez, numa culpa à qual a lei poderá ser alheia – as interpretações que têm sido veiculadas vão no sentido de toda e qualquer intervenção ter lugar em sala de aula. É esperado que o professor de Educação Especial ministre conteúdos curriculares? A resposta deverá ser «claro que não» e, nesse caso, questiona-se: em que momento da aula o professor de Educação Especial irá trabalhar as áreas causais em défice do aluno? 

(iii) O tempo para colaboração com os docentes do aluno é considerado na componente letiva ou não letiva? 

(iv) Para quando a indicação de um número aproximado recomendado de alunos por docente de Educação Especial em apoio direto? É que há escolas em que os professores de Educação Especial acompanham 5 alunos ou menos e há outras em que existe um rácio de 20 e até 30 alunos por professor de Educação Especial. Ou o professor de Educação Especial ficará afeto a turmas, como já está a ser prática em algumas escolas, olvidando-se ou reduzindo-se o seu papel na intervenção de áreas específicas (causais)? 

O professor de Educação Especial é um recurso humano escasso nas escolas. Se este recurso for canalizado para a sala de aula, num papel que, frequentemente, não se distancia do que um assistente operacional/tarefeiro faria (ver se o aluno passa o que está no quadro, se comporta, compreende o que está a ser dado), não haverá ninguém na escola, para além de, em alguns casos, o Psicólogo Escolar – um recurso ainda mais escasso - que trabalhe as áreas causais em défice que justificam as dificuldades que os alunos estão a revelar (se essas áreas causais não estiverem diretamente relacionadas com conteúdos curriculares) – e tal engrossará os gabinetes privados de apoio especializado, no caso dos alunos cujas famílias tenham sustentação económica para tal. Mas saber isto implica não proferir afirmações como as que também se têm ouvido, segundo as quais o diagnóstico não é importante com a nova legislação. Mais do que afirmar-se que não é importante, apela-se a que se ignore o diagnóstico. Atenção: afirmar-se que, com esta legislação, não é necessário haver um diagnóstico para se iniciar uma intervenção é verdade (ou seja, não é necessário esperar pelo diagnóstico para que um aluno possa usufruir de medidas de suporte à aprendizagem e à inclusão). Contudo, afirmar-se que o diagnóstico não é necessário nem importante é ignorar-se referências como, entre muitas outras, Allal (2001). O diagnóstico – encontrar as causas – é fundamental. Por exemplo, nas dificuldades de leitura e escrita, as causas podem ser diversas (pode, entre muitas outras, tratar-se de uma dislexia e disortografia). E só sabendo as causas se pode perceber como intervir (nos diversos contextos). As causas poderão ser défices em pré-requisitos curriculares, mas também poderão ser défices em áreas como a atenção, a consciência fonológica, a memória (vários tipos de memória) e muitíssimas mais. Se se souber isto, percebe-se a importância de um trabalho centrado nas áreas causais, da competência, entre outros professores e técnicos especializados, do professor de Educação Especial, sendo que muito desse trabalho, o grosso desse trabalho, não poderá ter lugar em contexto de sala de aula.

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