Um projeto de doutoramento do músico Rodrigo Pires de Lima permite “traduzir” partituras para pessoas cegas, utilizando um sistema eletrónico com sons que as situa na obra. Estudante no Minnesota, o saxofonista de 36 anos desenvolveu um projeto que integra tecnologia já existente e a combina com ecolocalização — capacidade biológica de localização através de sons —, permitindo a um músico cego tocar ao vivo sem recurso a partitura em braille, usando antes um auricular e emitindo um som que é, depois, reverberado para si mesmo.
A ideia surgiu em 2013, quando estudou em Estrasburgo e conheceu a pianista francesa Caroline Sablayrolles, “que é parcialmente cega”. No decurso dessa amizade, viu-a “preparar os concertos, cuidar dos filhos e usar lupas e outros gadgets para ler uma partitura”. “Pensei que tinha de haver uma forma mais fácil (...). Mais tarde, ao estudar no departamento de Terapia Musical da Universidade do Minnesota, desenvolvi no âmbito do doutoramento uma peça, começando a criar uma forma de tornar este processo mais célere”, conta Rodrigo Pires de Lima.
Fascinado pelos estudos de ecolocalização humana que, segundo as suas pesquisas, “nunca foram usados para música ou, até, comunicação” entre os seres humanos, aliou este conhecimento a um processo de “descodificação” através de sons e de uma interface electrónica, na qual teve apoio do técnico de som e guitarrista José Grossinho.
“Eletronicamente, o que acontece é que conseguimos que uma pessoa cega consiga ler uma partitura, mesmo que isto esteja feito para pessoas que nem têm de ser cegas, ou nem tenham de ser músicos, ao descodificarem a partitura utilizando a ecolocalização”, aponta Pires de Lima.
Um dispositivo com auriculares e um microfone permite ao músico utilizar “cliques com a boca” para receber um feedback que transforma os acordes, através da reverberação, num código estabelecido previamente. Na prática, permite a um músico não perder tempo a estudar uma partitura, ainda que o processo esteja ainda numa fase “muito embrionária”. Durante um concerto, os outros músicos utilizam também “um metrónomo nos ouvidos”.
A solução encontrada pelo músico português poupa o “dobro ou mais do tempo” de outros métodos, como o braille, que utiliza as mãos, necessárias também para tocar. E já foi testada, a 8 de março último, num concerto da sua banda, Electroville Jukebox. Nessa atuação, no Espaço criArte, em Carcavelos, a banda juntou-se a Rui Batista, músico com deficiência visual e diretor da Associação de Cegos e Amblíopes de Portugal (ACAPO), e a experiência “correu muito bem”, naquela que foi a estreia mundial da peça Daniela 3.0, de Rodrigo Pires de Lima, e a primeira utilizando este método.
“Rui Batista explicou-me que isto poderia ser, no futuro, uma ferramenta que permitisse orquestras mistas [com pessoas com e sem visão] e outras coisas “brutais” (...). Também pode ajudar a ultrapassar a dificuldade em ter coragem de abordar outros músicos para criar projetos, porque assim sentem dificuldades”, considera. Bernardo Pires de Lima defende a tese no Minnesota a 30 de abril e, entretanto, gostava de poder tocar com a pianista francesa Caroline Sablayrolles, para “fechar o ciclo”, mas não exclui a hipótese de continuar a desenvolver o projeto, desde que tenha “as condições necessárias”.
Reforçando que a ecolocalização tem “outras aplicações”, disse que pode permitir, num ponto “muito avançado”, o estudo de uma partitura de Beethoven “em qualquer lado”, em vez de estar em casa, a “parar, ler em braille, num processo extremamente lento e demorado”. “Para o estilo de música que faço, na onda de Portishead, por exemplo, o código tem cinco momentos, cinco “cliques”, cada um, um acorde. (...) Pode usar-se uma linguagem em que o sistema seja mais detalhado, mais complexo”, refere.
A aplicação do conceito poderá permitir “um uso na dança, descodificando movimentos em vez de notas”, incidindo a tese do saxofonista sobre a peça criada especificamente para ser tocada com este método, uma estreia mundial. “Gostava de explorar isto, porque ainda é muito embrionário. O diretor de música da Universidade disse-me que era giro ligar o GPS a este projeto, e isso tem potencialidades intermináveis. As pessoas [cegas] conseguiriam andar só a usar a boca [fazendo sons], nem precisariam de bengalas”, revela.
Fonte: P3 do Público
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