sábado, 27 de janeiro de 2018

Vendas de fármacos para hiperactividade baixam. É um bom sinal?

Pelo segundo ano consecutivo, as vendas de embalagens de medicamentos para a hiperatividade e défice de atenção diminuíram em Portugal (em 2017 e em 2016), invertendo a tendência de crescimento muito rápido dos anos anteriores que deixou alarmados vários especialistas e até chamou a atenção dos políticos.

Os dados mais recentes disponibilizados (...) pela Autoridade Nacional do Medicamento - Infarmed indicam que, das duas substâncias atualmente no mercado para tratar a PHDA, venderam-se perto de 254 mil embalagens, entre janeiro e novembro do ano passado. No mesmo período de 2016, foram comercializadas perto de 259 mil. Um decréscimo ligeiro, portanto, mas que vem no mesmo sentido do que já tinha acontecido em 2016.

Indicados para tratar a chamada perturbação de hiperatividade com défice de atenção (PHDA), os fármacos como a Ritalina, nome comercial mais conhecido do psicoestimulante metilfenidato, continuam a dividir opiniões. Há quem defenda que são prescritos em excesso e que a PHDA se transformou numa espécie de epidemia, mas há quem contraponha que estas teses não passam de mitos e até comportam riscos, como o de inibir alguns pais de pedirem ajuda para crianças e jovens com este tipo de perturbação.

Este debate saltou para a ordem do dia quando foi divulgado em 2015 o primeiro (e até agora único) estudo do Infarmed sobre a utilização de fármacos para a PHDA – e que indicava que, desde 2003 e até 2014, o crescimento fora quase exponencial. Nesse ano, Álvaro Carvalho, psiquiatra à frente do Programa Nacional para a Saúde Mental da Direção-Geral da Saúde, alertou que havia um recurso excessivo a este tipo de fármacos e que era necessário estudar a situação. Foi com base nos dados então divulgados – e que apontavam para a prescrição de cerca de 5 milhões de doses por ano – que tanto o Bloco de Esquerda como o PAN apresentaram projetos de resolução no Parlamento no ano passado.

"Um novo paradigma de diagnóstico"

A polémica reacende-se agora com um ensaio sobre este tema que vai ser lançado na próxima semana. No livro intitulado Hiperacividade e Défice de Atenção: Da presença e Ausência de Si, editado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, o pedopsiquiatra Pedro Strecht propõe uma visão mais abrangente e defende que é necessário “um novo paradigma de diagnóstico e intervenção” no que à PHDA diz respeito.


Recordando que ao longo dos últimos anos tem aumentado exponencialmente o número de crianças diagnosticadas como tendo o quadro de hiperatividade com défice de atenção, "bem como aquelas que precocemente iniciam medicação regular com psicoestimulantes", Pedro Strecht pergunta: “Será que todos estes rapazes e raparigas são verdadeiros hiperativos?” .

Olhar para esta perturbação “é uma tarefa muito mais desafiadora do que simplesmente rotular e medicar”, sustenta num artigo publicado na edição online da Visão, lembrando que só no ano passado foram vendidas “mais de cinco milhões de embalagens” deste grupo de psicofármacos destinados a menores de 15 anos de idade. 

Para o neuropediatra Nuno Lobo Antunes, que lançou em 2014 um livro sobre esta problemática (Mais Forte Que Eu - Hiperatividade e Défice de Atenção), Pedro Strecht está a ser “pouco honesto” quando se refere aos números, ainda por cima errados, de vendas destes fármacos, dando a entender que apenas são utilizados por crianças e adolescentes em Portugal. 

Ao contrário do que muita gente pensa, nota, "estes medicamentos também são consumidos por adultos”. E diz que a ideia que Pedro Strecht espalha de que “médicos e pais são capazes por dá cá esta palha de medicar as crianças” é “insultuosa para as famílias que vivem num sofrimento significativo”.

“Os pais só vão ao médico depois de terem tentado tudo e mais alguma coisa”, afirma, garantindo que “ninguém confunde a exuberância natural da infância e da juventude com a hiperatividade e défice de atenção”. Para Nuno Lobo Antunes, esta discussão tem mesmo contribuído para eclipsar outro debate que era “bem mais importante fazer”: o da prescrição de medicamentos neurolépticos, antipsicóticos como a Risperidona, que diz já ter visto serem dados “a crianças de dois e três anos”. “Esse é que é um problema muito sério”, afirma.

Um problema biológico

O que os dados do Infarmed indicam é que o crescimento da utilização de fármacos para a PHDA foi, de facto, quase exponencial ao longo de mais de uma década. No estudo de 2015, o Infarmed observava que o consumo de metilfenidato tinha disparado desde que esta substância (que no mercado português é vendida com os nomes Ritalina, Rubifen e Concerta) começou a ser comparticipada pelo Estado em 2003.

Um crescimento que, frisa-se naquele trabalho, também se observou noutros países e pode ficar a dever-se "a uma multiplicidade de fatores, incluindo o maior conhecimento da doença". Mas também se lembra que o tratamento farmacológico para a PHDA “continua a ser um tema controverso devido a uma eventual excessiva medicação de crianças e adolescentes e ao potencial abuso de medicamentos estimulantes”.

A PHDA é uma condição caracterizada por “sintomas persistentes de hiperatividade, impulsividade e falta de atenção” e a prevalência é estimada entre 5 a 7% da população em idade escolar, sintetiza a autoridade do medicamento. Feito sob supervisão de um especialista em perturbações do comportamento na infância, o tratamento com estes fármacos não está indicado como de primeira linha para todas as crianças e adolescentes, mas apenas para aquelas que apresentem sintomas severos ou moderados, recorda.

Além do metilfenidato, em 2014 passou a ser comparticipada em Portugal também a atomoxetina (Strattera de nome comercial), que é usada quando o psicoestimulante não resulta ou tem contraindicações. 

Evidentemente, admite Nuno Lobo Antunes, “haverá crianças medicadas que não deviam estar medicadas, mas também haverá muitas que deveriam ser medicadas e não são”. Criticando aquilo que designa como "informação de Facebook", o neuropediatra nota que os fatores genéticos são claramente preponderantes neste tipo de perturbação que prejudica não só o desempenho escolar, mas também familiar e tem repercussões sérias - estas pessoas têm por exemplo mais acidentes de viação ou gravidezes indesejadas. “Este é um problema biológico, não da sociedade”, enfatiza.

Já Pedro Strecht defende que o que se deve fazer nestes casos é “uma leitura emocional de cada criança e adolescente no seu contexto dinâmico”, olhando-a não só através do “potencial genético” que herdou, mas também em função das “múltiplas interferências ambientais”, como ritmos de vida, circunstâncias familiares específicas, adequação escolar”. E dá exemplos: ter e dar mais tempo de tranquilidade e relação afetiva com os mais novos "parece ser uma boa resposta", tal como "delimitar regras diárias simples", ajudar a manter ritmos adequados de sono e vigília e conseguir um melhor balanço escola e lazer.

É preciso fazer um estudo

“Não sei se haveria necessidade dessa embalagens todas”, comenta a pediatra e presidente do Infarmed, Maria do Céu Machado, que não deixa de notar, porém, que “as especialidades pediátricas são habitualmente muito criteriosas na prescrição de psicofármacos” e que este tipo de medicamentos têm indicação para serem usados apenas em fases transitórias. 

O que será necessário perceber, observa, é se o número de casos está ou não a aumentar, um estudo que está por fazer em Portugal. Mas reconhece que falta também saber até que ponto a vida moderna, com pouca atividade ao ar livre e muita tecnologia, não conduz a um dispêndio menor de energia e se isso poderá ter um impacto no aumento de diagnósticos.

Contestando aquilo que classifica como "mitos", José Boavida Fernandes, neuropediatra que é presidente da Sociedade Portuguesa de Défice de Atenção, fez contas e concluiu que haverá cerca de 25 mil utilizadores destes fármacos na população em idade escolar. Ou seja, cerca de 1,7% do total, bem menos do que a prevalência estimada da PHDA em estudos epidemiológicos internacionais. Esta onda de críticas, lamenta, é "o somatório de várias ideias postas a circular, algumas equívocas e que têm na base informações erradas".

Aumento natural?

O médico, que desde 1989 trata crianças e jovens com metilfenidato - na altura importado pelos hospitais por não estar à venda em Portugal -, considera natural o aumento exponencial nos primeiros anos: “Foi o crescimento num país que não tinha nada [para a HPDA] e que passou a ter”. Esta medicação, compara, funciona como "um par de óculos" para quem vê mal ao perto. "Os óculos não curam mas corrigem" e o fármaco "corrige um problema químico do cérebro, como provam os estudos de imagiologia funcional".

De resto, admite, a preocupação com os eventuais efeitos a longo prazo da utilização de medicamentos em crianças com o cérebro em formação faz todo o sentido e está a ser objecto de investigação através de um projecto financiado pela Comissão Europeia. Os resultados preliminares recentemente divulgados demonstram que "não há efeitos sobre o sistema nervoso central". Pelo contrário, "há um efeito protetor", diz. A investigação continua.

Fonte: Público por indicação de Livresco

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