“Muitas vezes falo-lhes, por exemplo, em termos de poesia do facto de haver mais homens nos manuais, mesmo quando temos imensas poetisas com muita qualidade. Por que é que os manuais estão cheios de homens? Eu discuto isso com os alunos e noto que às vezes as miúdas se viram para os colegas e dizem ‘Estás a ver? Eu bem tinha razão!’”.
Trazer uma perspetiva de género para a sala de aula é um desafio para muitos educadores, mas para Sara Barbosa, professora do ensino secundário no Agrupamento de Escolas Monte da Lua, em Sintra, é um trabalho que compensa. “Eles normalmente gostam de debater os assuntos, sobretudo as raparigas. Elas sentem-se muito validadas.”
O trabalho de professores preocupados em olhar para a educação com “lentes de género” tem sido facilitado nos últimos anos com os Guiões de Educação, publicados pela Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género (CIG) desde 2010. Estas obras, que têm como eixo “a construção de um conhecimento sobre a humanidade igualmente integrador de homens e de mulheres”, foram desenvolvidas para servir de apoio a professores de vários ciclos de ensino. Mais de 1000 docentes de todos os distritos do país tiveram acesso a acções de formação acreditadas entre 2013 e 2016, de acordo com dados enviados pela CIG, e os exemplares estão disponíveis em muitas bibliotecas escolares e até municipais, ou em formato digital no site da comissão.
O guião para o ensino secundário foi o último a ser publicado, no passado mês de dezembro, encomendado à Associação Portuguesa de Estudos sobre as Mulheres (APEM). Nesta publicação, a CIG privilegiou a vertente científica, centrando-se nas disciplinas “que configuram a estrutura do ensino secundário” ao invés de se focar mais em temáticas transversais, como acontecia para os guiões dirigidos aos outros ciclos de ensino. Para tal, a CIG voltou a convidar especialistas em Estudos sobre as Mulheres de várias áreas para trazer uma perspectiva de género para algumas áreas “fundamentais” do secundário, garantindo que “a educação para a cidadania também se faça no contexto específico de cada disciplina”. “Não é possível falar de estereótipos sexistas e procurar combatê-los se o conhecimento ensinado nas diferentes áreas do saber permanecer humanamente incompleto e estereotipado”, refere a CIG (...).
Espírito crítico
E como é que se pode abordar o programa das disciplinas do secundário com uma perspetiva de género? O guião está dividido por nove capítulos que abrangem as áreas de Português, Inglês, Filosofia, Educação Física, História, Biologia, Economia e História da Cultura e das Artes.
É sugerido aos professores sublinharem o trabalho de mulheres que contribuíram para cada uma das áreas, analisando textos nas aulas. Na Ciência, por exemplo, o trabalho pode passar por contrariar o estereótipo de que “ser cientista é fazer parte de uma profissão masculina” ou até pensar no impacto social de técnicas como o acesso à reprodução assistida. Já na História da Arte, os docentes podem desconstruir o falso argumento da qualidade, “um dos principais e, muitas vezes, mais perversos argumentos para justificar a desproporção persistente entre mulheres e homens no mundo das artes e da literatura”. Os professores de Economia, por sua vez, são convidados a colocar aos alunos questões como: “Será que a desigual participação dos homens e das mulheres no mercado de trabalho produz desigualdades no acesso a bem-estar e a direitos?”
O guião encerra com um capítulo dedicado a “temas do mundo atual”, como o assédio sexual ou as mulheres na religião. As secções sobre conciliação trabalho-família e empreendedorismo feminino são da autoria da actual secretária de Estado para a Cidadania e Igualdade, Rosa Monteiro, que contribuiu enquanto investigadora ainda em 2015.
A investigadora Cristina C. Vieira, coordenadora deste guião para o ensino secundário, partilha a experiência enquanto formadora das oficinas dinamizadas com professores, afirmando que os docentes têm “mostrado grande interesse e abertura para aplicar as actividades propostas”. Mesmo havendo vontade, trazer esta perspectiva de género para as aulas “não é sempre óbvio”, reconhece a professora Sara Barbosa, para quem estas questões deveriam ser integradas no currículo. “Isto não deve ser um trabalho pontual, deve ser um trabalho sempre presente.”
Mas todos os contributos, pontuais ou continuados, são valiosos para alimentar nos alunos o espírito crítico em relação às desigualdades de género que permeiam a sociedade, desde o conhecimento científico até às relações pessoais. “Quando saem das aulas e vão a conversar uns com os outros acho que aí ganhámos, porque é mesmo isso que é necessário no ensino secundário — que eles falem sobre as coisas e pensem sobre as coisas.”
Fonte: Público
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