sábado, 20 de janeiro de 2018

O VALOR DE UMA HISTÓRIA

Desta vez entrou na consulta acordado e a falar. O Gabriel tem seis anos. Conheci-o com três, metido num carrinho e muito ensonado. Vinha de Viseu sem diagnóstico. Tinha tido, desde os três meses de idade, crises epilépticas de vários tipos, muitas delas muito prolongadas e desencadeadas por febre. Quase não falava e os pais, gente inteligente, insatisfeitos com a abordagem clínica que o filho estava a ter num outro centro, decidiram partir em busca de novo parecer. Para mim o diagnóstico era óbvio e na consulta seguinte tinha a confirmação genética do síndrome de que suspeitara. Nesse Natal recebi por correio, num envelope almofadado, um lindo anjinho branco, enviado pela mãe do Gabriel. Ainda hoje o tenho pendurado no teto do meu gabinete.

Entretanto a epilepsia do Gabriel tem estado razoavelmente controlada e, apesar do atraso no desenvolvimento da linguagem, é uma criança com uma vida normal. Decidimos adiar um ano a entrada para o ensino básico, dando-lhe mais algum tempo de preparação na pré-primária. Hoje a consulta era rotina. Ajustar doses de fármacos, escrever informação para a escola....

Quando ele entrou no consultório, reparei que trazia na mão um saquinho cheio de M&Ms e pedi-lhe para me dar um. Fingiu não ouvir, foi direto à carteira da mãe onde meteu cuidadosamente a saqueta das guloseimas e em seguida correu o fecho.

Comecei a conversar com os pais e ele, entretanto, foi direto à mesinha das crianças onde se encontram jogos e livros.

- O Ruca! - exclamou entusiasmado.

- Pegou no livro e pôs-se de pé ao meu lado.

- Conta a história!

Aproveitei o momento para avaliar as suas capacidades intelectuais e linguísticas e comecei-lhe a contar a história. O Ruca levantava-se da cama entusiasmado, lavava-se e vestia-se sozinho rapidamente, pois estava convencido que naquele dia ia ao circo. Ao chegar à cozinha o pai disse-lhe que não era naquele dia mas sim no seguinte, sábado, que iriam ao circo. De repente reparei na cara do Gabriel. Estava quase a chorar. Eu estava muito preocupada a ler o texto e não tinha reparado no desenho que o acompanhava. Na imagem colorida, via-se o Ruca na cozinha em frente ao pai, com uma expressão tristíssima. Mudei rapidamente de página e continuei a ler, desta vez atenta à imagem que acompanhava o texto. O pai consolava o Ruca dizendo-lhe que nesse mesmo dia, depois da escola, iam lanchar a casa dos avós e comer bolo de chocolate. Olhei para a cara do Gabriel. A expressão de tristeza tinha desaparecido, tal como na cara do Ruca. Ia a virar a página mas o Gabriel prendeu-me a mão e ordenou:

- Espera!

Dirigiu-se à carteira da mãe e correu o fecho. Tirou de lá o saquinho de M&Ms e pediu à mãe para o abrir. Em seguida colocou-o na mesa à minha frente e disse-me:

- Come!

Não me fiz rogada, meti três dedos no pacote e comi um molhinho de bolinhas de chocolate. Era hora de almoço e eu tinha fome. Mais a mais eu senti que, segundo o Gabriel, eu merecia aqueles chocolates. Continuei a leitura com o Gabriel encostado às minhas pernas. Quando terminei a história, pegou no livro e arrumou-o em cima da mesinha. Os pais não fizeram mais perguntas sobre as capacidades cognitivas do filho. A história do Ruca tinha sido um instrumento valioso na avaliação cognitiva e emocional daquela criança.

Marquei a próxima consulta e despedi-me. O Gabriel beijou-me espontaneamente pela primeira vez.

Teresa Temudo
Fonte: Visão

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