A Universidade do Porto é provavelmente a mais avançada escola de ensino superior em Portugal no que respeita à integração de pessoas com deficiência nos seus cursos e vida académica. O seu Gabinete de Apoio aos Estudantes com Necessidades Específicas Especiais existe há mais de 20 anos e é dos poucos, no quadro do ensino superior português, que dispõe de um orçamento anual fixo – 50 mil euros, maioritariamente assegurados pelo mecenato do Banco Santander Totta – para auxiliar estudantes com diversos tipos de deficiência. Um gabinete que hoje emprega várias pessoas, com e sem deficiência, mas que tem por meta, segundo confessou a sua responsável, atingir o dia em que a universidade seja já tão inclusiva que possa dispensar os seus serviços.
A história começa no início da década de 1990, quando Alice Ribeiro era estudante do Curso de Línguas, Literaturas e Culturas na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Um cartaz pedindo aos estudantes cegos para irem à secretaria alertou Alice, e a recém-eleita Associação de Estudantes a que pertencia, para a existência de um problema. “Aquilo chocou-nos um bocado, porque era um cartaz para estudantes cegos! Achámos que havia ali uma falta de comunicação muito grande”, conta Alice Ribeiro, que é há mais de 20 anos responsável pelo Gabinete de Apoio aos Estudantes com Necessidades Específicas Especiais da Universidade do Porto (GAENEE.UP).
Com os seis colegas cegos ou com baixa visão que acabou por encontrar e conhecer, Alice Ribeiro criou um serviço de apoio ao aluno com deficiência visual na Faculdade de Letras. “Na altura, os estudantes com necessidades específicas identificadas eram esses”, explica a responsável. O serviço prestado desperta o interesse da U.Porto que nele se envolve e que o passa a assegurar cinco anos mais tarde, mantendo Alice Ribeiro, já licenciada, ao leme. “Em 2011, creio, este gabinete torna-se uma estrutura integrada mesmo nos serviços da universidade”, recorda hoje a responsável.
Hoje o GAENEE.UP presta apoio não só a estudantes com deficiências físicas e sensoriais, como explica a responsável, mas também a outros com doenças crónicas, do foro psicológico – como sejam as depressões crónicas ou os transtornos obsessivos compulsivos –, ou com perturbações inseridas no espetro do autismo, a estudantes que possam precisar de assistência a nível temporário. “Porque há doenças e acidentes que levam a que pessoas possam ter necessidades específicas durante um tempo”, remata.
Concretizando, hoje “temos pessoas cegas, com baixa visão, com baixa audição, surdos profundos, pessoas com mobilidade condicionada e muito condicionada – os casos de paralisia cerebral, doenças neuromusculares, etc.”, enumera a responsável.
No ano passado o gabinete de apoio da U.Porto apoiou 175 estudantes, mas a responsável faz questão de salientar o que considera um aspeto importante. “Nós trabalhamos com todos aqueles estudantes com necessidades específicas que manifestam vontade de terem um percurso diferente em relação aos colegas, ou seja, que pretendem frequentar a universidade ao abrigo do estatuto do estudante com necessidades especiais da Universidade do Porto, que existe desde 2008”, diz. “Há outros que, achando que a sua condição não tem impacto no seu percurso académico, não veem necessidade de solicitar o estatuto”, termina. Portanto, tem de ser sempre iniciativa do estudante requerer a frequência ao abrigo do estatuto, porque estamos a falar de adultos”.
Os que não requerem apoio, fogem às malhas das estatísticas e o gabinete só vai dando por alguns deles quando “solicitam uma entrada para o parque, porque têm dístico, ou chaves para os elevadores”, facto que a sua responsável lamenta. “Este é um dos grandes problemas que temos com este grupo específico, que é o facto de eles não serem detetados em termos de dados estatísticos”, diz. Para a Alice Ribeiro, a falta de dados e o pouco estudo que se faz sobre este grupo de população leva a que, por vezes, seja muito difícil atuar, porque não há informação fiável.
Um apoio que vai mais além
Se há aspetos – como é o caso das acessibilidades aos edifícios e à informação e a aquisição de equipamentos e tecnologias específicas – que competem à universidade assegurar, outros há que se tornariam incomportáveis sem a existência do Gabinete de Apoio da U.Porto. Isto porque, por vezes, o GAENEE.UP vê-se obrigado a ir além da prestação de assistência “ao estudante”, dando também apoio “ao indivíduo”.
É o caso daquilo que Alice Ribeiro designou como o “apoio de 3.ª pessoa” prestado a estudantes que, no seu dia a dia, dependem 100% de outrem. No fundo, o que o gabinete faz é disponibilizar assistentes pessoais para estudantes com mobilidade muito condicionada que, ao ingressarem na universidade, são deslocados e não podem trazer consigo a família, que era quem lhes dava apoio.
“Quando começámos a receber estes alunos, não tivemos muitas alternativas, porque a verdade é que ou não os recebíamos, porque eles não tinham outra forma de vir para a faculdade, ou então criávamos condições para os apoiar”, disse a responsável, acrescentando: “E, no fundo, a universidade acaba por extravasar muito as suas funções”.
Alice Ribeiro espera que em breve o panorama mude, com a publicação em setembro último da lei sobre a vida independente. A sua expectativa é que esta nova legislação crie condições no terreno para que a universidade (e o GAENEE.UP, em concreto) possa abstrair-se de intervir numa esfera tão íntima e pessoal do estudante com deficiência, “onde não deveria entrar”. “Felizmente que agora se estão a organizar essas soluções e, portanto, brevemente esperamos retirar-nos desse apoio e centrarmo-nos e investir mais nos apoios académicos, porque o nosso orçamento mesmo assim é reduzido e temos de priorizar”, disse.
Portanto, a função do GAENEE.UP, no entender de Alice Ribeiro, é dar um conjunto de apoios específicos e individualizadas, de acordo com as necessidades do estudante e do curso que está a frequentar, para que ele possa ter condições equitativas de frequência do ensino superior. Por isso, outro dos serviços que este gabinete da U.Porto garante é a adaptação de conteúdos a um formato flexível para mais facilmente poderem ser, digitalizados, ampliados, usados por tecnologias de apoio ou traduzidos em escrita braille ou em língua gestual.
“Aqui, na Universidade do Porto, os nossos estudantes surdos profundos, que usam a língua gestual como língua materna, têm tradução e interpretação de língua gestual nas suas aulas, nos momentos de avaliação e nos momentos de tutorias com os professores”. Pelas suas contas, a prestação deste serviço aos cinco estudantes surdos profundos inscritos na universidade, em diferentes cursos, com uma média de 25 horas semanais de aulas implica um custo de quase 6.000 euros mensais. “Portanto, de facto seria complicado para a universidade poder facultar este apoio”, afirma.
E é aqui que, para a responsável, ganha relevo o mecenato do Banco Santander Totta. “Estamos a falar de um orçamento anual de 50 mil euros, que vem na sua totalidade de verbas próprias, neste caso de um protocolo assinado com o Santander. E isto é importante que seja dito, porque, afinal, são os mecenas que estão a apoiar os estudantes e a fazer um trabalho muito interessante nesta área”, sublinha Alice Ribeiro.
Dito isto, a responsável faz questão de frisar que o montante anual de que dispõe é usado “exclusivamente nas ajudas técnicas aos estudantes com necessidades educativas especiais”. Ou seja, descreve, financiam “técnicos de mobilidade e orientação, língua gestual, apoio de 3.ª pessoa… coisas muito concretas e dirigidas”. Tudo o mais está diluído no orçamento global da universidade, sublinha. “Melhorias ou aquisição de equipamentos, licenciamentos, produção de informação acessível, todo o funcionamento do serviço, todas as melhorias que estão a ser feitas ao nível dos sistemas de informação da universidade, da gestão da informação, correções de acessibilidades nos edifícios… Tudo isto é responsabilidade da universidade e entra noutro centro de custos e orçamento”, explicou.
Uma mais-valia esquecida
Para Alice Ribeiro a questão dos gastos e do investimento que Universidade do Porto tem feito para receber os seus alunos com necessidades especiais traz uma mais-valia de que a maioria das pessoas não se apercebe e que é preciso salientar. “A presença deste tipo de estudantes na universidade tem-nos feito repensar e reavaliar todo o nosso sistema de informação, tornando-o cada vez mais acessível, o que faz com que ele também seja mais flexível e mais fácil de usar por todos” afirma.
Isto porque, segundo diz, a universidade tem vindo a aperceber-se que há necessidades específicas do estudantes especiais que coincidem com necessidades dos estudantes estrangeiros, que são cada vez em maior número. “Isto é muito interessante porque abre portas a um conjunto de outras diversidades. Para além de que, por exemplo, temos tipo imensos trabalhos de investigação e outros dentro destas áreas específicas, com resultados muito interessantes, que se não fosse a presença destes estudantes nem existiriam”, revelou Alice Ribeiro.
A título de exemplo, a responsável refere a ferramenta Places – Plataforma de Acessibilidade, criada na Universidade do Porto para ensinar a comunidade a criar informação acessível e que é útil a todos; ou a BAES – Biblioteca Aberta do Ensino Superior, gerada em colaboração com outras oito universidades, que dispõe de “um acervo de mais de 3.000 títulos em braille, áudio e texto integral”.
Face o tudo o que tem vindo a ser realizado pelo GAENEE.UP e pela U.Porto, resta a questão de saber que outros objetivos quer alcançar Alice Ribeiro. A sua resposta surpreende: a meta que a responsável visa atingir com o gabinete da U.Porto que dirige, que é… tornar-se obsoleto. “Sempre tivemos em mente, como objetivo último, tornar o ambiente da Universidade do Porto de tal forma inclusivo que deixe de haver necessidade de existir um gabinete deste tipo”, afirma.
Embora a responsável reconheça que vai haver sempre necessidade de intermediação pontual, em determinadas área – como seja a da adaptação de informação –, “o ideal é que muitas das atribuições do serviço, neste momento, deixem de ser necessárias, na medida em que a própria universidade se vai abrindo e tornando mais acessível e mais permeável à diferença”.
Fonte: Dinheiro Vivo por indicação de Livresco
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