Todos os sábados, quando ainda mal
amanhece, saio de casa em direcção ao mercado semanal. Para além da qualidade
dos produtos hortícolas e dos preços apetecíveis, gosto de tomar o pulso ao
povo da terra que me acolheu. Depois, pela manhã dentro, as intermináveis
conversas com os vendedores locais ajudam-me a compreender melhor os dramas
daqueles que ainda têm a coragem necessária para consagrar a vida à agricultura,
sobretudo neste país.
Esta manhã, porém, ao deambular por
um dos corredores mais afastados da zona central do comércio local, uma voz
inquietante desviou-me a atenção das nabiças:
“– Quem compra pássaros?”
Não
resisti e aproximei-me. À chegada, um cenário dantesco corroeu-me a alma: gaiolas
e mais gaiolas com roseicollis, periquitos,
papagaios, enquanto, bem à minha frente, uma catatua olhava longamente na minha
direcção. Baixei-me e quase consegui tocá-la. Concentrei-me, então, na linha
que a prendia ao pedaço de madeira, enquanto a via tentar destruir, bicada após
bicada, as algemas que a separavam da felicidade: um fio de nylon com pouco mais de um dedo polegar.
Quase petrificado, ali fiquei, de joelhos, enquanto a vendedora, pressentindo
mais um potencial cliente, se aproximava com ar sorridente:
“– É uma catatua domesticada. Pode
tocar-lhe que ela não morde! E são apenas 70 euros…” – olhei à volta, sem
conseguir esboçar qualquer resposta. Presa à minha indecisão, a pobre mulher lá
voltou rapidamente à carga:
“– Aquelas além também são catatuas,
embora selvagens. Apenas 25 euros cada… aqueles roseicollis ou inseparáveis-de-faces-rosadas, como também lhes
chamam, faço-lhe um desconto, pois estamos quase no fim da praça…” – agradeci
com um leve e forçado sorriso. Tão forçado que quando dei por mim estava
novamente só perante a inquietação da catatua.
A plumagem colorida da exótica ave
atraía os olhares dos que por ali passavam, embevecidos por ver um aperaltado
pássaro, com crista de galo, empoleirado numa estaca de madeira. Lembrei-me,
então, de Da Vinci, que compraria os
pássaros nas feiras, apenas para poder voltar a libertá-los… e perante o
exemplo do génio humanista senti vergonha de mim.
Em frente da pobre catatua, o tempo
parecia ter parado. De quando em vez, os nossos olhares encontravam-se. Talvez
curiosa com a minha presença, interrompia as bicadas no fio, para logo depois
voltar a retomar a tarefa. A razão parecia levá-la a compreender a missão de
Sísifo que tinha pela frente, mas, ao mesmo tempo, o instinto parecia forçá-la
a insistir uma e outra vez. Afinal, o instinto de liberdade é sempre mais forte
do que todos os raciocínios urdidos.
Quando, por volta do meio-dia, me
vim embora, carregado de alfaces e cenouras, trazia estampada na alma aquela
luta inglória. E é agora, aqui sentado à porta de casa, com vista para o Tejo,
que recupero o sentido de mais um dia. Lá ao fundo, os maçaricos, os alfaiates
e os flamingos esvoaçam em cima dos lodaçais. E lembro-me das gaiolas e da
infeliz catatua, a bicar as algemas da escravatura moderna. As imagens vêm
então em catadupa e assomam-me à memória as aves de rapina que um dia vi
acorrentadas num desses museus de falcoaria, em que invocando o princípio das
relações mutualistas se condena à escravatura um animal para gáudio de meia
dúzia de homens. Lembro-me ainda de ter estudado que algures num passado não
muito distante existia o hediondo hábito de furar os olhos dos melros para que
eles cantassem de um modo mais profundo e dolente. E ao imaginar que esse canto
terá animado serões e inspirado até poetas ou músicos, dou por mim a sentir
vergonha de ser homem.
Quando compreenderemos, finalmente,
que os animais não se compram e vendem? Quando compreenderemos que os seres
humanos não são tão especiais como julgam? Quando se tornará claro que a nossa
suposta superioridade em relação a toda e qualquer forma de existência não
passa de uma representação errada e profundamente perigosa?
Talvez que para muitos dos leitores
faça ainda sentido a caça, bem como o tenebroso ritual de espetar ferros
afiados nos dorsos de touros, perante as gargalhadas da assistência, mas para
mim tudo isso já não faz qualquer sentido. Vai mesmo contra tudo o que a
passagem dos anos me tem ajudado a compreender.
Sem
margem para dúvida, matar por prazer já não deveria fazer parte do mundo ao
qual eu gostaria de pertencer, tal como comprar animais para depois aprisionar
dentro de jaulas. Se cada cidadão tem hoje nas mãos o imenso poder do
consumidor, a verdade é que nem tudo se pode comprar ou vender. A liberdade é,
definitivamente, uma delas.
Na
obra A genealogia da Moral, editada
em 1887, escreveu Nietzsche: “Talvez deva admitir-se que o deleite da crueldade
não desapareceu; apenas se subtilizou, se revestiu das cores da imaginação, se
espiritualizou e se cobre com nomes hipócritas”. O futuro parece, cada vez
mais, continuar a dar-lhe razão…
Renato
Nunes
(renato80rd8918@gmail.com)
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