“Olha, é a craque!” Ou, por outro nome, Patrícia Traquina, que já tem à espera, junto da porta do pavilhão, três colegas de equipa – João, Rafael e Nuno. Entre a saída do carro para a cadeira de rodas e a conversa que se vai chutando pelo corredor fora, chegam os outros. Mostra-se uma prótese nova, volta-se ao tema da Raríssimas. Enquanto isso, começam a sair do pequeno armazém junto ao campo as cadeiras de jogo. O treino da APD (Associação Portuguesa de Deficientes) Leiria está prestes a começar.
Hoje, treina-se andebol no Pavilhão Municipal da Maceira, em Leiria. Como a equipa da APD Leiria participa nos dois únicos campeonatos federados de desporto em cadeira de rodas – basquetebol e andebol -, os dois treinos semanais podem nem coincidir. Neste final de ano civil, o andebol é o único campeonato que resta. O basquetebol só volta em 2018. Dos 15 atletas que vestem as cores da APD Leiria, 11 praticam os dois desportos. Só a APD Lisboa tem, também, uma equipa nos dois campeonatos.
O basquetebol e o andebol em cadeira de rodas são casos em que as federações acolhem as modalidades respetivas, com bons resultados. Mas as dificuldades subsistem na criação de equipas, nas acessibilidades e transportes, bem como na aquisição das suas “chuteiras”: as cadeiras de rodas.
Nem todos precisam de cadeira de rodas no dia-a-dia. Uns usam próteses, outros usam muletas. Mas, antes de entrarem em campo, todos fazem a transferência, como dizem, para a cadeira de jogo. Têm mais rodas (além das laterais, apresentam pequenas rodas à frente e atrás), uma faixa pélvica obrigatória e são desenhadas “à alfaiate”. Cada jogador tem a cadeira à sua medida, ajustada às necessidades. O que também não faltam são as proteções traseira e frontal, ou seja, uma pega em espuma e um aro baixo para evitar choques mais violentos e impedir que a bola fique presa debaixo da cadeira. Não há travões, nem direção assistida.
Em números, uma cadeira de rodas razoável para jogar custa cerca de 3000 euros, sendo depois ajustada para garantir a segurança e uma melhor performance dos atletas. Sabendo que a média dos plantéis anda em torno dos 12 jogadores – e o preço, em lote, baixa –, os valores variam entre os 25.000 e os 30.000 euros para se garantir o equipamento indispensável a um clube.
De volta ao treino, que já começou. Entre os 11 que fazem passe e receção em movimento, temos dois jogadores da seleção nacional de andebol, uma mulher e o júnior dos juniores – Nuno, de dez anos. Nuno, o jogador mais novo dos campeonatos, veste uma camisola de “A Guerra das Estrelas” por gostar das t-shirts, não por causa dos filmes. Tem espinha bífida, mas isso nunca o tirou do desporto. Desde os dois anos que anda na natação, passou pelo futsal e encontrou, este verão, lugar no andebol e no basquetebol – sim, ele é um dos que joga as duas modalidades.
São todos maiores que ele, mas lá vai furando entre os companheiros de equipa. Saiu da primária com presença no quadro de mérito. Agora, a frequentar o 5.º ano, já tirou 92% num teste de Matemática. Não estuda muito. Alimenta os exames de acordo com o que vai apanhando nas aulas mas, como tem de faltar, de vez em quando, por causa da doença, às vezes não corre tão bem, como conta a mãe. Neste dia, está cansado. Acordou cedo para ir a Coimbra, ao hospital.
Ainda se nota, no entanto, a genica do rapaz. Irrequieto e sempre na brincadeira, mesmo quando ainda não havia pneu para a roda direita da sua cadeira, antes do treino começar. No final de novembro, na vitória contra a APD Paredes, vestiu a camisola “9” e estreou-se pela equipa leiriense. Ainda não marcou, mas isso fica para uma próxima.
Uma exposição de entidades e empresas, seguida de um convite para ver a final da Taça de Portugal de andebol em cadeira de rodas, promoveu a chegada de Nuno. A APD Leiria ganhou e, desde aí, a mãe de Nuno viaja entre Mendiga e Maceira, onde treinam, pelo menos uma vez por semana. Os treinos acabam às 23h30 e, para Nuno, deitar por volta da 1h não pode ser prática corrente, a escola ainda está primeiro.
“Jogo de cintura” para contornar as distâncias
Os campeonatos de andebol e basquetebol em cadeira de rodas não se espalham pelo país. Metade das equipas está nos distritos de Porto e Lisboa. Os custos tornam difícil a criação de clubes que se aproximem dos atletas e os incluam. Há apoios das federações, como explicam Augusto Pinto e Joaquim Escada, responsáveis pelo basquetebol e pelo andebol em cadeira de rodas, respetivamente. Oferece-se material desportivo, inscrições, seguros e, no caso do andebol, uma comparticipação financeira entre 500 a 1000 euros aos clubes. O basquetebol tem um “banco técnico” que pretende ajudar os clubes em início de atividade.
Enquanto não se multiplicam equipas, João Queirós continua a fazer ginástica entre Vila Nova da Barquinha e Maceira para ir treinar. São quase 160 quilómetros, ida e volta, 50 minutos para cada lado. É a equipa mais próxima que o atleta de 31 anos tem. Já jogou mais longe, no tempo em que o Sporting tinha uma equipa experimental e o seu “sportinguismo” o levou em viagens até Lisboa. Está há três anos na APD Leiria, mas o “jogo de cintura”, como apelida, é cada vez maior e já não estava a pensar jogar este ano. “Era para ter deixado de jogar. Há cerca de um ano juntei-me e, portanto, acabo por ter despesas que não tinha em casa dos meus pais”, explica.
A ginástica de João, que cobre todas as deslocações gastando cerca de 15€ a cada treino, tanto permite ir a um dos dois treinos semanais como, por vezes, impede-o de vir a algum treino. “Antigamente vinha aos dois treinos ou só a um, caso não houvesse jogo. Tentava fazer um jogo de cintura. Agora continuo a fazer, mas ainda maior”.
Como João, há casos noutras equipas, como o Sporting/Messines/AMAL que recruta atletas em toda a região do Algarve para treinar em Silves. Ou casos de atletas que ficam sem jogar por falta de transporte, visto que nem todos têm um carro adaptado para se deslocarem.
“A minha fisioterapia foi aqui”
Os constrangimentos são muitos, como explicam (...) dirigentes, atletas e treinadores. Há poucos jovens, poucas mulheres e pouco financiamento para alargar o recrutamento e o apoio aos jogadores. Se olharmos para os dois campeonatos, não chegamos a uma dezena de mulheres e os juniores (sub-22) passam por pouco essa marca.
Patrícia Traquina é a única mulher a vestir a camisola da APD Leiria. Joga há 20 anos, tinha 17 quando chegou a um treino. “A minha fisioterapia foi aqui”, afirma convictamente. No campo ganhou amizades, autoestima, aprendeu a ser mais autónoma e a crescer. Esteve na Áustria, no primeiro torneio da seleção nacional de andebol em cadeira de rodas, uma prova mista em que Portugal só perdeu na final. Ainda alimenta o sonho de ver uma competição feminina criada.
Depois de um dia no centro escolar com crianças do pré-escolar e primeiro ciclo, local de trabalho de Patrícia, vir treinar não é tarefa fácil. Há o gasto financeiro de quem faz 35 quilómetros, a falta de descanso de quem acorda cedo no dia seguinte e as mazelas físicas que custam mais a recuperar. Mas atira o clássico “quem corre por gosto…”.
Aquela a quem chamam “craque” no início do treino foi recebida com 17 anos pelo vice-presidente da associação. Manuel Sousa, também membro-fundador, ainda joga aos 64 anos. É o mais velho da equipa e o que tem mais histórias para contar do tempo em que as acessibilidades eram nulas e o apoio inexistente. É também pela falta desse suporte que está cá. Acolhe os mais novos na equipa e, fora do campo, dá palestras e conta a sua própria história.
A vida de Manuel Sousa mudou no dia em que, num carro com alguns amigos alcoolizados, fica paraplégico. A partir daqui, numa queda a pique, não aceitou bem a reabilitação porque pensou que ia voltar a andar. “Não havia a preparação que existe hoje. Debato-me hoje por isso. Vim para casa revoltado pela maneira que era olhado, pelo ‘coitadinho’”. O refúgio esteve no álcool e nas drogas. Anos mais tarde, passada uma reflexão que o levou a parar e uma “ressaca muito complicada”, construiu uma cadeira artesanal e começou a correr pelas estradas leirienses. “Uns chamavam-me maluco, outros não acreditavam em mim”, recorda. Certo é que correu maratonas, foi ao Japão e Estados Unidos com a bandeira portuguesa às costas e está desde o início – há quase 30 anos -, na equipa da APD Leiria.
Hoje não treina. Andou de um lado para o outro e, todo o dia a tirar e pôr a cadeira no carro, está “estourado”. Continua a ir na mesma, para continuar a angariar mais familiares porque, como diz em jeito de brincadeira: “Já me adoptaram umas quantas famílias”.
Quanto custa uma nova equipa?
Estão prometidas pelo país novas equipas. Há projetos na Figueira da Foz, no Porto, em Guimarães e Viseu. Para já, não passam de ideias montadas, mas sem financiamento, como o caso da equipa da Figueira da Foz, que já tem dez atletas, entre os quais três mulheres, mas faltam os patrocínios. Nuno Pedrosa, que neste momento joga na APD Leiria, é a cabeça deste novo clube que queria entrar nos campeonatos de andebol e basquetebol em cadeira de rodas. Faltam os apoios, os patrocínios e as cadeiras de rodas.
Os orçamentos para uma época nestes desportos não são elevados. Para uma equipa estreante, não seriam precisos mais de 4000 euros para os gastos diários do clube. Mas depois vem o resto. Existem deslocações, seria preciso uma carrinha emprestada ou de uma delegação da APD (delegação essa que não existe na Figueira da Foz). O pavilhão poderia ser cedido e os transportes e alimentação, numa primeira fase, podem ficar por conta dos atletas. Mas, se isto são condições mínimas, o indispensável continua a faltar. Voltamos às cadeiras de rodas e aos valores entre 25.000 e 30.000 euros.
Acrescentam-se as dificuldades de recrutamento de atletas, uma luta na qual as federações dizem apostar. A ideia do presidente da Federação Portuguesa de Desporto para Pessoas com Deficiência, Mário Lopes, é criar sinergias com o poder local, isto com um orçamento maior. “Se tivéssemos um orçamento diferenciado, podíamos ter uma perspetiva de criação de pólos de desenvolvimento, um por cada distrito, em clubes comprometidos com esta realidade, com o apoio das autarquias e do ensino superior”. Este é o plano que o presidente quer engendrar, mas que as contas não permitem.
Fonte: Público
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