7h00.
O despertador toca e Mauro enrola-se nos cobertores, assim que consegue
silenciar o maldito aparelho. A situação acaba por repetir-se mais quatro
vezes, até que a mãe irrompe pelo quarto, ameaçando-o de dedo em riste. O
menino decide então arrastar-se até à casa de banho, enquanto amaldiçoa a sorte
que lhe calhou na rifa da vida.
7h30. Daqui a uma hora, o Mauro
estará dentro do carro do pai a caminho da escola. Até lá, apenas corridas
entre a casa de banho, o quarto, a cozinha… corridas vertiginosas entremeadas
por gritos de urgência, interrompidos pelo veloz beijo de despedida da mãe,
invariavelmente atrasada.
8h40. Dez minutos de atraso e o pai
atira a mochila de Mauro para o banco de trás do carro. Alguns instantes
depois, seguem os dois a toda a velocidade pela estrada fora, enquanto na rádio
se fala do trânsito infernal na capital e da chuva que tarda em chegar. Lei de Murphy: raio dos semáforos escolhem sempre o dia errado para ficarem vermelhos!
9h00. Mauro está à porta da escola,
o pai toca-o docemente na testa e permanece parado alguns instantes a vê-lo
desaparecer para além do portão. Arranca depois a toda a velocidade rumo ao
escritório. É forçoso recuperar os 5 minutos que leva de atraso.
9h05. Mauro irrompe pela sala de
aula. O professor exige a sua saída imediata e pede-lhe para bater à porta antes
de voltar a entrar. Ainda estremunhado, lá obedece. Senta-se, começa a retirar
os livros da mochila: Inglês, Português, Matemática, Expressões e Estudo do
Meio. Depois, perfilam-se os cadernos das Fichas de Actividades e o volumoso dossier do caderno diário, acompanhado
do estojo. A mesa é pequena e o colega do lado faz-lhe sentir o
descontentamento com um subtil pontapé na tíbia. Mauro sabe que não convém tugir
nem mugir, pois o intervalo chega depressa e as mãos do colega são conhecidas
pelos pares de galhetas que vão, benevolentemente, distribuindo.
9h15. A sala do 3.º ano pode enfim começar
a produzir. Hoje, o dia amanhece com a disciplina de Inglês, o esperanto dos
tempos modernos, que abre a porta do paraíso para todos os pecadores:
– Let’s study
the family! Open
your books on page eleven…
– e os meninos aprumam-se perante uma língua ainda tão estranha e distante.
Cerca de meia hora depois chega a
vez da Matemática. A entrada do professor titular torna o ambiente mais rigoroso:
– Abram os livros na página 31.
Vamos ler, interpretar e explorar gráficos de barras e tabelas. Moda,
diagrama-de-caule e folhas, amplitude, dados quantitativos e qualitativos. O
silêncio petrificava a sala.
Faltava cerca de um mês para o fim
das aulas e o derradeiro teste escrito anunciava-se. Todos suavam e os cadernos
inundavam-se de nervosismo. Mauro tentava concentrar-se em tudo, mas o
perfeccionismo traía-o, não o deixando fazer quase nada:
– Onde está o teu diagrama-de-caule
e folhas? – o grito lancinante do professor arrancou-o da indecisão. Alguns
instantes depois, quando o intervalo chegou, mal conseguia sentir os dedos.
11h00. Após 30 minutos de vadiagem
pelo recreio, recomeçavam os trabalhos, agora com o Português socrático trazido
pelo desacordo ortográfico:
– Gramática. Vamos aprender a
escrever. Como sabem, no ano anterior, a Prova de Aferição foi um desastre
completo. Copiem para o caderno…
Lição número 1 – Determinante artigo;
Lição número 2 – Determinante
possessivo;
Lição número 3 – Determinante
demonstrativo;
Lição número 4 – Paráfrases…
Os exercícios iam e vinham,
interminavelmente. O quadro enchia-se e apagava-
-se a uma velocidade estonteante. Os cadernos dos meninos também, que mais não fosse de rabiscos e gatafunhos. Muito frequentemente, lá vinha um grito do Mestre e a cópia correcta reiniciava-se. Não havia tempo a perder, que a gramática era uma deusa perante a qual todos tinham de inclinar-se: ALELUIA! Começava, então, o maestro:
-se a uma velocidade estonteante. Os cadernos dos meninos também, que mais não fosse de rabiscos e gatafunhos. Muito frequentemente, lá vinha um grito do Mestre e a cópia correcta reiniciava-se. Não havia tempo a perder, que a gramática era uma deusa perante a qual todos tinham de inclinar-se: ALELUIA! Começava, então, o maestro:
– O que é “o”?
– Determinante artigo definido –
respondia o Mauro.
– O que é “um”?
– Determinante artigo indefinido –
acertava a Matilde.
– O que é “do”?
– Contracção da preposição “de” mais
o determinante artigo definido “o” – e o professor respirava finalmente, quando
o Mauro e a Matilde acertavam em uníssono a última pergunta da Bíblia
linguística. Os outros meninos podiam enfim respirar, quando o sucesso de
alguns camuflava o insucesso de quase todos.
Logo a seguir, era a vez da poesia.
Cecília Meireles chegava do outro lado do Atlântico, trazendo consigo “A
pescaria”:
“Cesto de peixes no chão.
Cheio de peixes, o mar.
Cheiro de peixe pelo ar.
E peixes no chão.
Chora a espuma pela areia,
na maré cheia.
As mãos do mar vêm e vão,
as mãos do mar pela areia
onde os peixes estão.
As mãos do mar vêm e vão,
em vão.
Não chegarão
aos peixes do chão.
Por isso chora, na areia,
a espuma da maré cheia”.
Após uma vertiginosa leitura, chegava a vez de esquartejar as estrofes, os versos, identificar as rimas, explorar figuras de estilo e sonoridades. No meio disto tudo, bem lá do fundo da sala, o Pedro, que ainda mal conseguia identificar metade das letras do alfabeto, lembrou-se de levantar a mão e interromper:
– Professor! Posso fazer uma pergunta?
– Fala, fala para aí… mas rápido,
que é preciso avançar!
– A poesia é um cesto de peixes?
– Valia mais estares calado! – e todos
se riram em uníssono. A contagem tinha, contudo, de ser rapidamente retomada.
Os números eram depois confirmados um a um pelo Mestre, que, de resto, já
limpava o suor da testa com tanto somatório. A poesia, aqui para nós, também
nunca fora o seu forte, neste país em que quase todos são poetas, mas quase
ninguém lê poesia. Isto para já não falar da História, da Literatura e outras
quejandas artes dos pré-históricos capazes de viver um dia afastados dos smartphones.
Quando o toque que anunciava o
recreio chegou, a imagem do cesto de peixes, que ilustrava o poema
esquartejado, permanecia projectada no quadro. E Pedro saiu para o intervalo a
pensar que a poesia devia estar relacionada com as tarefas piscícolas… Quanto
ao professor, com mais de 30 anos de serviço, sentia-se extenuado. Pensava em
tudo o que ainda tinha de leccionar até ao final do ano e sentia-se a tremer.
Os programas eram a Bíblia e tudo tinha de ser sumariado, custasse o que
custasse, doesse a quem doesse. Como se isso já não bastasse, depois das aulas,
aguardavam-no ainda os relatórios para preencher, as fichas para corrigir, as
aulas para preparar, os pais para atender, as faltas e os sumários para
registar. Havia ainda a acção de formação do Reiki que nunca mais acabava. E as metas do sucesso para alcançar
mandavam às urtigas todas as energias positivas que bem tentava atrair... Burocracias
e mais burocracias, problemas e mais problemas para solucionar que o levavam a
desejar estar longe de tudo e de todos (síndrome de burnout, dirão alguns) . Certo é que quando finalmente se sentava
no carro para regressar a casa dava sempre por si a pensar há quanto tempo não
conseguia ler um livro ou simplesmente sorrir com um sorriso dos seus meninos.
No período da tarde, chegava Estudo
do Meio. E a corrida era retomada, hoje em torno da função excretora… Logo a
seguir, que o tempo era escasso, chegavam as Expressões, com mais conceitos e
conceitos que deveriam ser sumariados. Teorias que o pobre do professor,
confinado às paredes daquela escola dos primeiros anos, mal poderia imaginar
que voltariam depois, ano após ano, ciclo após ciclo, a ser novamente repetidas.
No fim do dia, iludia-se em surdina: talvez houvesse ainda oportunidade para
fazer um desenho e deixar os meninos sonhar. Mas a verdade é que raramente o
tempo permitia outros voos e os sorrisos continuavam sempre a ser adiados.
17h30. Fim das aulas e o Mestre regressa
a casa. De seguida, há um intervalo e as actividades extra-curriculares podem
enfim começar. O professor das AEC’s (Actividades Extra-Curriculares, para os
mais distraídos) vem de outra escola e quase sempre chega atrasado, mas os
alunos esperam-no sentados no recreio, já cansados. Depois da Educação Física, começa
o hip-hop e o yoga. Por volta das 18h00, o pai do Mauro há-de vir buscá-lo, pois
a maratona do Ironman ainda vai no
adro.
Às 18h30 iniciam-se as explicações.
Três vezes por semana, a carrinha vem buscar quase todos os meninos à escola,
logo a partir do 1.º ano, que é de pequenino que se torce o pepino... Lá no
centro, a cerca de 15 minutos de viagem, fazem os trabalhos, organizam os
cadernos, dissipam dúvidas, treinam mais exercícios, ensaiam novos exames, enquanto
o Mauro estuda desalmadamente Inglês. Nos restantes dois dias da semana, o adulto
em miniatura vai para o Taekwondo, a
natação e a dança. Tudo para descomprimir e relaxar, que ao sábado de manhã há
Inglês naquela escola conceituada onde também estudou o irmão, agora no
internato em Medicina, enquanto o domingo é deixado para estudar e fazer os
trabalhos em família, depois de ir à missa. E, claro, para o Mauro poder jogar
no computador durante toda a tarde. Sim, que também é fundamental relaxar os
sentidos e desfrutar das excelentes classificações arrancadas a ferro e fogo
das mãos dos mestres…
Às últimas horas do domingo, como
quem cumpre uma rotina, o pai abeira-se do Mauro e, invariavelmente,
pergunta-lhe:
– Amanhã começa a escola! Estás
feliz?
– Não! – e o menino olha
sofregamente para o ecrã da playstation,
a sua mais recente prenda por ter conseguido ser o melhor da turma no teste de
Português.
O pai ainda exclama, profundamente desalentado:
– Não entendo… no meu tempo eu gostava
de ir à Escola. Hoje, não querem saber de nada. Que geração! Põe, pelo menos,
os olhos no teu irmão…
Mas Mauro já não ouve nada. Quando,
finalmente, se levanta, arrasta-se penosamente até à cama e recorda-se da
sexta-feira passada. Faz um esforço para recapitular o que aprendeu nas aulas,
mas não lhe vem nada à cabeça. Apenas consegue lembrar-se do seu amigo Pedro,
que não tem dinheiro para comprar o equipamento para jogar futebol e menos
ainda para andar no Centro de Explicações. E enquanto tenta adormecer, Mauro,
um menino de 9 anos, que as pautas ratificam como um excelente aluno, pensa no
ódio que sente sempre que imagina a escola, e não compreende. Simplesmente não
compreende. Adormece.
No dia seguinte, a pista de fórmula
1 estará novamente à sua espera…
Aprender
exige tempo para amadurecer e pensar. Quando nos lembraremos disso?
O
actual sistema educativo continua agarrado ao velho adágio: “Água mole em pedra
dura tanto bate até que fura”. Por isso, numa espécie de tentativa de acelerar
o tempo, transformou-se o primeiro ciclo (a antiga Escola Primária) na
antecâmara da universidade e passa-se o resto dos anos a repetir em dó maior o
que já se tentou leccionar em dó menor. E os exames repetem-se uns atrás dos
outros, com relatórios e mais relatórios, como se deles resultasse o milagroso
remédio para todas as doenças.
É
altura de transformar o sistema numa escadaria, com patamares ajustados e
interligados. Rever os programas, garantir que os directores sejam eleitos
pelos seus pares e reduzir, de modo realmente significativo, o número de alunos
por turma seria o início de uma revolução, pelo sucesso de todos os alunos e
pela saúde mental de todos os professores. O problema, perdoem-me a ousadia, é
que as grandes causas continuam a não mover moinhos…
Renato Nunes
(renato80rd8918@gmail.com)
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