sábado, 2 de janeiro de 2021

A tendência alarmante de usar melatonina em crianças

Parece ser cada vez mais frequente entre os pais que querem que os seus filhos durmam à hora certa, e durmam durante a noite toda, darem-lhes uma versão sintética da hormona melatonina. Nas minhas consultas noto que está a tornar-se alarmante o número de bebés que tomam melatonina ou que lhes foi sugerido que tomassem. Como pais, todos queremos o melhor para nossos filhos e, claro, cada um fará coisas diferentes para o alcançar, mas é importante perceber que existem outros caminhos que pode seguir antes de recorrer à administração de fármacos.

O que é a melatonina?
É a hormona do sono e é um dos factores responsáveis pela sensação de sonolência. Esta hormona é libertada na escuridão pela glândula pineal, situada no cérebro, uma das razões pelas quais estar num quarto escuro é tão importante para um sono de qualidade. É um agente cronobiótico, o que significa que regula o relógio circadiano ou biológico, e é também um hipnótico, o que significa que em doses mais altas pode induzir o sono.

O aumento natural dos níveis de melatonina no corpo nas 1-3 horas antes do início do sono é conhecido como “aparecimento da melatonina por diminuição da luz”. Este é o sinal de sono na programação do nosso relógio biológico e corresponde ao fim do sinal de “vigília” produzido pelo sistema circadiano.

O cérebro de um bebé ou criança saudável irá produzir naturalmente a sua própria melatonina e regular o seu ritmo circadiano por volta dos 4-5 meses de idade. O que o bebé faz de dia, o tempo de brincadeira, a exposição à luz solar, a interacção social, etc., influenciam esse relógio biológico.

Mais ou menos entre as 18h e as 20h, todos os dias, os níveis de melatonina do bebé começam a subir. Esse ciclo natural ocorre diariamente não só nos bebés, mas também em crianças e adultos saudáveis. Esta é a forma natural do corpo se preparar para o sono, ajudando a adormecer e a dormir durante a noite.

Os níveis de melatonina aumentam à medida que o cortisol (hormona do stress ou da actividade de alerta) cai, já que o seu corpo tem um mecanismo integrado perfeito para impulsionar a sua necessidade de dormir. Este mesmo ciclo acontece nos bebés e nas crianças pequenas.

A exposição à luz branco-azulada à noite altera o “aparecimento da melatonina por diminuição da luz”. É por isso que, à noite, a exposição à luz intensa pode piorar a insónia. Por isso, é recomendável eliminar qualquer tempo de ecrãs nos bebés e crianças do pré-escolar até uma hora antes de dormir.

Mas afinal o que se passa com o sono dos bebés e das crianças para que os pais recorram à melatonina?

O sono dos bebés continua a ser um tema “quente”, com várias teorias, “treinos” e orientações. Por isso, é importante que os pais o conheçam para para melhor conseguirem lidar com ele e compreender por que motivo os filhos têm dificuldade em adormecer ou dão noites difíceis.

O sono do bebé e das crianças pequenas é completamente diferente do sono dos adultos, por imperativos biológicos de desenvolvimento neurológico (passam mais tempo em períodos de sono REM, vulnerável a despertares mas muito importante para o desenvolvimento cerebral).


A saber: Os bebés precisam de dormir muitas horas, não dormem de uma só vez, não dormem só de noite, não dormem a noite toda, adormecem de forma diferente e passam por muitas fases de desenvolvimento naturais mas que tendem a perturbar o sono.

E, por isso, quando os pais se queixam acerca do sono dos seus bebés, a maior parte das vezes estamos a falar de expectativas extraordinariamente elevadas e desajustadas ao normal desenvolvimento do bebé. Em particular motivadas pelas exigências económicas da sociedade, que não coincidem com as necessidades do bebé. Não estamos, regra geral, a falar de perturbações de sono, mas sim de algo normal que com os devidos ajustes pode diminuir.

No entanto, fruto da necessidade de dormirem uma noite tranquila para lidar com o dia-a-dia dos pais, assistimos frequentemente à medicamentalização do sono dos mais pequenos, com as tão famosas gotas mágicas de melatonina. No entanto, o uso de melatonina entre crianças não está ainda bem estudado, nem existem padrões universalmente aceites sobre a quantidade que deve ser tomada ou por quanto tempo. A melatonina está no mercado em versão líquida, gomas mastigáveis, cápsulas e comprimidos, todos com diferentes instruções de dosagem.

Esta substância é uma ferramenta importante no tratamento de distúrbios do sono em crianças e, por ser derivada naturalmente, existe uma percepção generalizada de que é segura. Existem realmente algumas crianças que podem beneficiar da prescrição de melatonina – aquelas que têm problemas de saúde como fibrose cística, crianças no espectro Asperger e Autismo, que geralmente sofrem de distúrbios do sono.

Mas os estudos não recomendam o seu uso em crianças saudáveis, porque ninguém estudou os efeitos de longo prazo. Existem vários estudos que mostram que o uso da melatonina de modo contínuo e prolongado tem efeitos secundários, provocando alterações em vários sistemas fisiológicos, principalmente o cardiovascular, imunitário e metabólico.

Os efeitos colaterais conhecidos e mais comuns a curto prazo incluem sonolência matinal, enurese nocturna, dor de cabeça, tonturas, náusea e diarreia. A melatonina também pode interagir com outros medicamentos. Quando administrada a crianças pode levar a níveis persistentemente elevados de melatonina no sangue ao longo do dia. Isso pode estar associado à sonolência persistente.

Mais especificamente, a administração de melatonina artificial pode afectar a capacidade do próprio corpo de produzi-la e esse é um risco muito grande quando há outras formas de ajudar os mais pequenos a dormir. Portanto, serão necessários mais estudos para compreender os efeitos do uso da melatonina em crianças e bebés.

Existem outras formas de ajudar os mais pequenos a dormirem melhor?

Não há necessidade de recorrer a esta hormona, já que tudo se resolve com uma rotina de sono consistente. Encoraje os seus filhos a uma mudança de comportamento relativamente aos hábitos de sono.

Seguem algumas dicas:
  • Sendo a melatonina a “hormona do escuro” porque a escuridão desencadeia sua libertação, e é suprimida pela luz, incluindo a luz azul pelas ecrãs digitais, uma das melhores formas de ajudar o cérebro de uma criança a ficar com sono é diminuir as luzes da casa e desligar os ecrãs omnipresentes pelo menos uma hora antes de dormir.
  • É importante obter exposição à luz natural durante o dia, uma vez que a luz solar ajuda a regular os padrões de sono. Quando as pessoas são expostas à luz pela manhã, independentemente de ser luz solar ou artificial muito forte, isso ajuda na produção nocturna de melatonina.
  • Na hora de dormir, tente manter uma rotina estruturada e consistente para preservar o horário de sono-vigília.
  • Implemente uma rotina de relaxamento antes de ir para a cama: um banho aromático, contar uma história ou cantar uma canção de embalar. Tudo isto ajuda a criança a reduzir o ritmo e a acalmar.
  • Para ajudar o seu filho a adormecer mais cedo, certifique-se de que ele não faz uma sesta tardia.
  • Confirme se o ambiente de dormir é apropriado para um bom sono: temperatura do quarto, luminosidade, conforto da roupa de dormir e quantidade de mantas.
  • Esteja atento à quantidade de horas de sono, sendo que os bebés, crianças pequenas e em idade pré-escolar ainda necessitam de 11 a 12 horas de sono por noite. Crianças que acordam cansadas têm uma maior produção de cortisol, o que dificulta ainda mais no momento de adormecer, tornando-se assim num círculo vicioso.
  • Lembre-se que os comportamentos relacionados com o sono podem ser aprendidos e é muito comum ver crianças com dificuldades de sono tornarem-se adultos com o mesmo problema.
É importante que os pais comecem a ter consciência dos malefícios da administração contínua de melatonina, sendo que para ajudar as crianças a dormir existem técnicas, mudança de comportamentos e rotinas, muito mais eficazes; que, na verdade, funcionam do mesmo modo para adultos com problemas de sono.

Portugal precisa urgentemente de directrizes para a identificação e gestão de distúrbios do sono em bebés e crianças, já que medicamentos sem prescrição médica são comummente usados para fazer com que as crianças durmam.

Clementina Almeida

Fonte: Público

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