Nas primeiras conferências de imprensa que a Direção Geral da Saúde convocou para dar conta da situação da pandemia de Covid-19 ao País, em março passado, não estava nenhum dos hoje bem conhecidos, de todo o público, intérpretes de Língua Gestual Portuguesa atrás das autoridades de saúde – mas já nem nos lembramos disso.
“Só ao fim de duas ou três é que esses momentos passaram a ter tradução simultânea, depois de algum protesto da comunidade surda”, recordam Sofia Figueiredo e Luís Oriola, os técnicos do Instituto Nacional para a Reabilitação que nos últimos meses acompanharam diariamente as comunicações das autoridades de saúde. É verdade que a sua presença trouxe mais visibilidade para a causa – “já se progrediu muito”, reconhece Luís Oriola – mas ambos partilham o receio de que, depois destes tempos, “tudo fique na mesma”. A não ser, salienta Sofia Figueiredo, “que haja regulamentação séria e que o Estado fique vinculado a ela”.
O momento para que nos remetem, no início da conversa, é para essas primeiras conferências de imprensa em que só estavam a diretora geral da saúde, Graça Freitas, a ministra da Saúde, Marta Temido, António Lacerda Sales, secretário da Estado da Saúde, e ainda Jorge Torgal, o porta-voz do Conselho Nacional de Saúde Pública, que reunira no dia 11 de março, nove dias depois do primeiro caso registado em Portugal. “As pessoas estavam apreensivas e não compreendiam o que se estava a falar. E se alguém não sabe o que se passa, torna-se um perigo para si próprio e para todos”, sublinham. “Há muito desconhecimento sobre este trabalho”, aponta Luís; “é que é mesmo importante garantir a acessibilidade”, insiste Sofia.
A ponte entre os surdos e a epidemia
Não gostam de falar deles – a não ser para explicar porque estão quase sempre de azul ou preto, “cores neutras, que não distraem o olhar” – embora reconheçam que o azul apela ainda à resistência e à luta da comunidade surda, desde que, num congresso mundial, em 1999, o ativista britânico Paddy Ladd instituiu o laço azul como símbolo da causa.
De resto, eles são a ponte entre a comunidade surda e a epidemia. Para evitar ruído na mensagem, ali não há lugar para dor ou para risos, seja para contar que há 118 ou zero mortos, ou para dar o exemplo, que se tornou uma caricatura, das visitas rápidas no quintal ou da troca de compotas no patamar da escada, no Natal, sugerida pelo subdiretor-geral da Saúde, Rui Portugal.
“Encarei-o como outro momento qualquer. Nós estamos lá para cumprir uma tarefa: traduzir para que todos entendam. Se fosse num contexto de informalidade se calhar dava espaço para mostrar um sorriso. De resto, não. Num momento formal de comunicação, não é possível ter outra atitude”, frisa Luís, que se tornou um rosto mais familiar no final de 2016, quando Marcelo Rebelo de Sousa passou a discursar com tradução simultânea no Palácio de Belém e quando a Presidência da República começou a disponibilizar esses vídeos online.
Agora, tanto Luís como Sofia reconhecem que a sua presença regular no ecrã ao longo de 2020 trouxe essa mais valia de alargar o serviço – como quem diz, que outros serviços e ministérios ficassem sensibilizados com a questão e passassem também a incluir tradução para a língua gestual. A comunidade ganhou até uma máscara transparente na zona da boca, por sugestão dos intérpretes a António Lacerda Sales, o agora secretário adjunto e da Saúde, que lançou o desafio à indústria para que criasse um modelo certificado, que pudesse servir toda a comunidade. Em causa, está um universo de 120 mil portugueses, cuja Língua Gestual é reconhecida pela Constituição desde 1997.
Mas nem todos mantiveram essa prática de inclusão, apontam, sublinhando sempre a importância do seu papel na mediação. E outros há, acrescentam, que os tiram depois do ecrã. “Continua a haver operadores de câmara que se esquecem de captar o intérprete de língua gestual portuguesa. Quando fecham o plano em quem está a falar, tornam o nosso trabalho um desperdício de tempo”, argumenta Luís, antes de reforçar: “sempre que está um intérprete, deve ser captado”.
Uma janela entreaberta
A grande questão agora, embora ainda seja um horizonte distante, é que, quando a crise sanitária aligeirar, as suas reivindicações fiquem novamente esquecidas. “Ainda nem se cumpre a dimensão da janela, resultante de uma deliberação da ERC”, sublinham ainda, a lembrar que deveria ocupar cerca de um sexto do ecrã – cerca de 16,6 por cento. “Mas a maioria está abaixo de 4%”, denunciam.
Mas não é só. A maior falha, consideram, é nas comunicações da Proteção Civil, que demasiadas vezes faz comunicações sem nenhum intérprete. “Agora, que estamos a começar a Presidência Portuguesa da União Europeia, seria muito importante que os intérpretes estivessem sempre em todos os momentos – e que pudéssemos ser um modelo nesse campo.”
Afinal, já foram dados outros passos há muito ansiados e que beneficiam todos: “por exemplo, o serviço SNS24 passou a estar disponível por vídeochamada, também graças à pressão da comunidade surda”, recordam. “A pandemia precipitou a implementação desse serviço. No início, as pessoas surdas infetadas tinham de recorrer a familiares para tudo. Para irem a um teste, de carro, como aquilo só funcionava por telefone, tinham de levar mais alguém. Agora, já fazem vídeochamada”.
Nada que os deixe exultantes. “Não notamos muito mais preocupação dos serviços públicos, daí temermos que, com o aligeirar da crise sanitária, esse desinvestimento possa acontecer”, persiste Sofia, a lembrar que a Lei 89/99 (que quer dizer aprovada há mais de 21 anos, em julho de 1999) ainda carece de regulamentação. “Esperamos que seja agora, finalmente.”
Teresa Campos
Fonte: Visão por indicação de Livresco
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