Margarida (chamemos-lhe assim, como a personagem da série que é companhia e amparo de longos dias no hospital), nove anos, conhece os cantos à casa como poucos. Sofre de paralisia cerebral e síndrome do intestino curto e desde bebé que os internamentos prolongados na ala pediátrica do Centro Hospitalar de São João, no Porto, lhe levam a normalidade a que a infância devia obrigar.
Parece em casa, ainda assim. Sabe os nomes de todos os médicos e enfermeiros que ali trabalham. Auxiliares também. Gosta de ajudar. A fazer as camas, a organizar as fraldas. Foi assim que aprendeu a contar. Foi também ali que aprendeu a brincar. “Esta boneca tem de ir para as urgências”, dizia. Quis ser médica, pois. Agora não. O motivo é mais do que válido: “Não quero ter de picar os meninos”. Prefere ser informática. Adora estar no computador. Ver vídeos ou a sétima temporada da série Morangos com Açúcar – a tal em que brilha a personagem Margarida -, ouvir música, escrever, jogar. “Gosto do Pacman.”
Margarida, a da vida real, está sentada com a professora Maria José, debruçada sobre uma baixinha mesa azul da sala da pediatria. Puxo bem preso no cimo da cabeça, óculos de massa, semblante ora traquina ora desconfiado, vai comendo um iogurte enquanto se prepara para o teste de Português. “Tens tudo o que é preciso?”, pergunta-lhe a docente, vestida com uma bata cor de vinho. Ela confirma: lápis, borracha, caneta. Tem tudo. Maria José ainda recebe uma breve chamada da professora de Margarida.
Antes, que é como quem diz antes de a covid chegar e virar tudo do avesso, ia à escola e passava parte do dia numa instituição. Só à noite ia para o hospital, para fazer tratamentos. Agora, por ter um sistema imunitário débil e andar um vírus à solta, está a tempo inteiro no hospital. Desde 19 de março. Por isso, todos os dias Maria José reserva umas horas para lhe ensinar a matéria do 4.º ano. Os testes são feitos ali, naquelas mesas baixinhas, e posteriormente enviados à professora da escola para que os possa corrigir.
Volta e meia, também fazem videochamadas, para Margarida rever os colegas e se sentir enturmada, mesmo à distância. O rosto denuncia-lhe algum enfado ainda assim. Já lá vão oito meses de recolhimento hospitalar. Vão-lhe valendo a Matemática, de que tanto gosta – “já aprendi até à tabuada do sete”, orgulha-se -, e este pedaço de escola que a professora do hospital faz questão de lhe levar diariamente.
Maria José, 57 anos, 35 deles como professora de ensino especial, é uma de três docentes colocados em regime de mobilidade estatutária no Hospital de São João. Chegou logo em 2014, quando o serviço arrancou. Nuno Rodrigues, 45 anos, formado em Educação Física, professor há 21, também. Marta Morais, 41 anos, docente do primeiro ciclo há 19, chegou dois anos depois.
Entre eles, vão distribuindo os alunos como podem, muitas vezes à custa de um grande trabalho autodidata. Marta trabalha com os do primeiro e segundo ciclos, Nuno com os do terceiro ciclo e secundário, Maria José dedica-se aos meninos da educação especial. Chegaram com motivações distintas – Maria José e Marta queriam uma experiência diferente, Nuno um trabalho mais estável -, mas foi o mesmo motivo que os fez ficar: as relações inevitavelmente mais próximas que se vão criando.
“Há uma envolvência emocional muito grande, tanto na relação com os jovens como com a família. Muitas vezes os pais também precisam de ser ouvidos”, aponta Maria José. Sobretudo quando estão em causa internamentos prolongados ou pacientes que chegam ao hospital nos primeiros tempos de vida e por lá continuam durante largos anos.
É o caso de Lara Leitão, 13 anos, atualmente a frequentar o 8.º º ano. Sofre de doença metabólica e é acompanhada no São João desde os dois anos. Atualmente, vem de 15 em 15 dias, às quartas-feiras de manhã, para fazer tratamentos. Mas graças aos professores do hospital nunca são horas perdidas. “Ajudam-me a perceber aquilo em que tiver dúvidas, a rever a matéria. Assim aproveito o tempo que estou aqui e até passa mais depressa.”
Está sentada num grande cadeirão castanho, a fazer medicação intravenosa, máscara bem rente à boca, a avó ali ao lado, amparo certo para o que der e vier. Até ao 6.º ano, Lara trabalhou sempre com a professora Marta. Agora, é acompanhada pelo professor Nuno. Mas a relação fica. “Vamos falando sempre por mensagens”, explica a docente. Tanto que Marta até sabe que hoje Lara tem teste de Francês. E que, apesar de ter a matéria na ponta da língua, está feita uma pilha de nervos.
“É uma miúda muito empenhada, mas muito ansiosa. Devia confiar mais nela”, diz, num raspanete ternurento. Lara sorri, comprometida, a dar-lhe razão sem dizer que sim. Quando crescer, quer ser gestora. Adora Matemática, Francês, Geografia. Tem quatros e cincos, mas “quer sempre ser melhor”, assegura a avó. E a doença está longe de ser um impedimento.
Professores que são psicólogos
Ser professor em contexto hospitalar é saber que não é sempre assim. Que a disposição nem sempre é a melhor. Que os miúdos nem sempre estão para aí virados. É lidar com o inesperado. Saber ler os momentos, respeitá-los também. É perceber que, dentro daquelas quatro paredes, as regras que norteiam a normal relação entre professor e aluno são voláteis, frágeis como a saúde que vai falhando.
Que no fim de contas importa só que as aulas que dão sejam uma dose de ânimo, pedaço de esperança no futuro que há de vir, promessa de fuga à dureza da doença. “Temos de ser muitas vezes psicólogos. Tenho crescido muito enquanto pessoa e gestora de emoções”, resume Marta.
O trabalho feito diariamente na oncologia pediátrica é um bom exemplo disso. Beatriz, dez anos, olhar penetrante, máscara rosa claro a condizer com a camisola, vai cumprindo mais um tratamento de quimioterapia, mas nem por isso se esquiva a uma aula de Inglês com a professora Marta. Debruçadas sobre uma larga mesa redonda da sala comum, vão olhando o tablet, Beatriz a tentar resolver os exercícios de vocabulário, Marta a ajudar sempre que é preciso. “Cat”, “dog”, “fish”, “spider”, diz a pequena, a provar o empenho. “Inglês é a minha disciplina preferida”, alegra-se.
Chegou ao serviço de oncologia do São João há mais de dois anos, com um sarcoma de Ewing. Fez cirurgia, quimioterapia, radioterapia. E por fim a doença entrou em remissão. Mas, em dezembro do ano passado, o problema voltou. Os tratamentos também. Há quase um ano que não vai à escola. Restam-lhe as horas que passa com a professora Marta. “Gosto de aprender. É fixe. É a melhor parte de estar aqui. E sou boa aluna”, conta, bem-disposta.
Maria Conceição (“Maria só”, como ela costuma dizer, brinca a mãe, Salomé), seis anos, fato de treino preto com estampado tigresa e canadianas ali à mão para a ajudar a movimentar-se, não quer conversa connosco. Mas presta grande atenção ao que Marta lhe vai ensinando. “Gosta mais de fazer os exercícios com a professora do que comigo”, partilha Salomé.
Há três anos, também Maria recebeu um diagnóstico de sarcoma de Ewing. Recuperou, passou oito meses livre de tratamentos, mas as más notícias regressaram. Agora vai alternando entre os internamentos e os tratamentos de ambulatório. Chegou a frequentar o ensino pré-escolar, mas a covid impediu-a definitivamente de ir às aulas. O tempo que passa a estudar no hospital sempre ajuda a enganar o desânimo.
“Ela tem pena de não poder ir à escola, mas gosta muito destes bocadinhos. Aprende com gosto e acho que nestas alturas consegue desligar.” Luís Gonçalves, pai de Beatriz, sente o mesmo. “Durante um bocado ela esquece completamente. E os professores ajudam-nos até a nós, que nestas situações ficamos algo desorientados.”
É desse carinho, desse reconhecimento, que se faz uma parte importante da motivação destes professores. Nuno Rodrigues lembra um gesto que o marcou particularmente. “Há uns tempos tive uma mãe que imenso tempo depois de a filha ter saído do hospital ainda me ligou a desejar bom Natal. Esses momentos em que percebemos que fazemos a diferença são o que nos faz continuar.”
As pequenas vitórias dos catraios que acompanham também. “Temos aqui imensos miúdos que são quadro de honra. Isso para nós é uma satisfação imensa. Muitos deles vão continuando a dizer-nos as notas, mesmo depois de deixarmos de os acompanhar”, salienta Marta. Por vezes, o contacto mantém-se quando os jovens debilitados que acompanharam no hospital se transformam em adultos bem-sucedidos.
Mas também há um lado angustiante, pesado, por vezes impossível de digerir. “Como é que lidamos com a envolvência emocional quando as coisas correm mal?”, repete Nuno, como que a acentuar a dificuldade da tarefa. “Tentando não lidar. Chorando às vezes. A primeira menina que acompanhei que faleceu marcou-me imenso. O mais difícil é trabalhar com miúdos que sabemos que não vão sobreviver.” Marta confessa que às vezes prefere nem saber.
“Nós próprios afastamo-nos, tentamos não fazer muitas perguntas, porque dói.” Dores que, inevitavelmente, vão com eles para casa. Preocupações também. Nuno admite-o, transparente. “Quando o meu filho tem uma dor de cabeça lembro-me logo daquele caso que também começou com uma dor de cabeça. Dou muitas voltas à mesa e tento racionalizar. Mas aquele ‘e se?’ é inevitável, pelo que vamos vendo aqui.”
Também por isso Maria José realça uma experiência “que ajuda muito a perspetivar os problemas”. E remata convicta, com o dever de missão bem firme, mesmo que a emoção de recordar os últimos seis anos ainda lhe turve os olhos. “O nosso papel principal aqui não é ensinar. É apoiar.”
Fazer a ponte com as escolas
O papel de Maria José, e de Marta, e de Nuno, é o de outros 51 docentes que, neste ano letivo, se encontram a trabalhar em hospitais pelo país fora, em regime de mobilidade estatutária (ainda que se mantenham sempre vinculados a uma escola). Ensinam, claro, mas também fazem a ponte com os professores das crianças internadas – sempre que estas já frequentem a escola. Mesmo os testes feitos no hospital são posteriormente enviados para estes, para que a avaliação possa ser feita por eles.
Para que a mobilidade aconteça, as unidades hospitalares devem dar nota à Direção-Geral da Administração Escolar (DGAE) da necessidade de contarem com docentes que façam o acompanhamento destas crianças e jovens. Contactado pela “Notícias Magazine”, o Ministério da Educação lembra que pode haver também o recurso à instalação da Teleaula, que resulta de uma parceria entre a Direção-Geral da Educação (DGE) e a Altice e que dá a alunos hospitalizados a possibilidade de participar nas aulas remotamente.
Ao Hospital de Santa Maria, em Lisboa, o projeto Teleaula, nascido em 1998, chegou em 2003, com um grande empurrão da Associação Nacional de Fibrose Quística. Por se tratar de uma doença que obriga a internamentos recorrentes, era imperativo arranjar forma de garantir que esses doentes não tivessem de interromper a formação escolar.
Diana Guerreiro, 55 anos, 33 deles como professora primária, chegou ao Santa Maria por essa altura. “Trabalhava numa escola aqui em Lisboa, tinha ficado sem turma e como soube que precisavam de alguém aqui disse que vinha.” Os primeiros tempos foram penosos, não esconde. “No início não foi fácil. Não conseguia lidar com a doença e o sofrimento. Não havia estrutura, não havia sala, estava sozinha, manter o espírito otimista era difícil.”
Mas a missão haveria de ficar mais leve com o tempo. Quatro anos depois, Diana passou a ter a companhia de Sara Costa, 42 anos, professora de Matemática há 19. Também ela procurava uma “experiência diferente”.
Diana e Sara recebem-nos na escola do hospital, uma pequena sala com uma mesa de madeira redonda, cadeiras várias, um computador equipado com webcam, um mapa mundi, um placard de cortiça onde segue cravada a “árvore generosa”, numa alusão ao livro homónimo, incluído no Plano Nacional de Leitura, que fala de afeto, de valores, de entrega incondicional. Tudo predicados fundamentais para a missão que desempenham.
A cobrir a janela, há uma espécie de cortinado com quadrados coloridos e desenhados das mais diversas formas. “É um pedaço da manta da amizade, uma iniciativa que em tempos tivemos com uma escola da comunidade. Achámos que dava um bom cortinado”, justifica Sara, num sorriso. Durante anos, foi ali que deram aulas (a todas as crianças e jovens que tinham condições para sair dos quartos) e tiraram dúvidas, fizeram videochamadas com várias escolas, promoveram atividades.
“Chegámos a ter meninos até aí atrás”, lembram. Depois veio a covid. E o distanciamento a que ela obriga. Pelo que a utilização da sala da árvore generosa e da manta da amizade está, por agora, em suspenso. Mas o trabalho das duas docentes não está de todo em standby. Diariamente, continuam a ir às enfermarias, dar aulas às crianças que se encontrem internadas.
São 11.30 horas e Sabina, nove anos, cabelo feito em mil mini-tranças, ar muito espevitado, já aguarda com expectativa a professora Diana. Nascida em Angola, veio para Portugal há pouco mais de um ano, para tratar uma anemia aplásica. Enquanto aguarda por um dador de medula compatível, vai alternando entre os internamentos e as passagens pelo hospital de dia. Se sai do hospital, é para se fechar no quarto. Culpa de um sistema imunitário fragilizado que lhe ameaça a saúde a toda a hora.
Mas o sorriso que lhe escapa assim que vê a professora entrar no quarto esconde bem a rotina difícil que lhe entrava a meninice. “É muito bem -disposta, muito alegre”, destaca Diana, que não perde o tempo. “Vamos fazer o aquecimento?”, pergunta, já desfeita em mimo. Sabina, que quer ser cantora e “doutora”, não pensa duas vezes.
Levanta-se e ali, ao pé da cama, a menina só de meias mas com o empenho inteiro ensaia vários jogos de mãos e palmas e joelhos, com diferentes músicas a acompanhar. “Lá vai uma, lá vão duas.” E Sabina vai cantando também. Feito o aquecimento, mãos à obra, que brincar também é preciso, mas há um texto sobre a lenda de São Martinho para ler. “A Sabina gosta muito de ler”, elogia Diana.
E a menina, que está sentada na cama, apoiada numa mesinha que é uma espécie de tabuleiro com pernas oblíquas, vai lendo, lentamente mas com sucesso. A professora ajuda com gestos. “Já estás a ler muito bem, Sabina”, derrete-se Diana. O caso não é para menos. Como nunca pôde ir à escola em Portugal, foi com ela que aprendeu a ler.
“Gosto de aprender com a professora Diana, é uma ótima professora”, comprova Sabina. E Diana desfaz-se num sorriso largo, como quem acaba de ganhar o dia. Antes de sair, ainda voltam ao “lá vai uma, lá vão duas”. E a professora promete regressar não tarda, para trazer castanhas, que Sabina nunca provou.
Lições de vida sem igual
Este tato, esta entrega, esta meiguice são condição sine qua non para o sucesso da tarefa. “Aqui não podemos ser simples professoras. Acabamos por estar sempre muito ligados aos miúdos e à família”, sublinham as docentes, de volta à sala onde agora falta o mais importante: os alunos. “Agarramo-nos ao facto de sentirmos que estes miúdos gostam de nós e precisam de nós.” À coragem que lhes veem também. “Muitos, mesmo estando doentes, são os primeiros a dizer ‘então hoje não me vens dar aula?’.
Apesar dos problemas que têm, são focados, têm objetivos de vida, dão-nos lições de vida que não temos em mais lado nenhum.” Diana partilha uma história pessoal, que diz bem de quanta admiração lhe cabe no peito. “Tenho uma filha com 19 anos que há dois ou três anos descobriu que tem uma doença crónica. Na altura trouxe-a cá e disse-lhe ‘olha para eles, vê como eles estão’. Foi a isso que eu me agarrei.” Sara não tem dúvidas. “Costumo dizer que há 14 anos que não tenho problemas nenhuns.”
Elas, as docentes, devolvem a bravura dos cachopos com ternura e dedicação. Com uma janela de normalidade também. “Lá fora, passaram a ser os meninos doentes. Por isso, aqui não falamos sobre isso. Aqui são só alunos. É a normalidade que se tenta manter.” Sabendo de antemão que o inesperado é uma parte indissociável do trabalho. As soluções de recurso também. Ainda mais em tempos de covid.
Nos últimos meses, por exemplo, as aulas por videochamada, com meninos que não se encontrando hospitalizados não podem ir à escola, tornaram-se habituais. O acompanhamento por WhatsApp também. Durante a manhã que passámos no Santa Maria, Diana e Sara tinham previsto ligar a Isaura, uma menina com fibrose quística que acompanham desde o 1.º ano (hoje está no 8.º). Mas, pouco antes da hora combinada, a mãe avisa que a jovem não está num bom dia. O tal inesperado com que lidam diariamente.
Diana e Sara respeitam o espaço, há muito o aprenderam a fazer. Mas nem por isso poupam nos elogios. “É uma menina inteligentíssima, sempre com muita vontade de aprender. É tão inteligente que um dia viu aqueles nomes estranhos das coisas no IKEA e começou a aprender sueco sozinha.” À inteligência, junta a resiliência, garantem. “Luta tanto, nunca nos deixa desistir.”
Mas no hospital os dias nunca são só orgulho e alegria. “Há coisas às quais nunca nos habituamos. À dor e à morte nunca nos podemos habituar”, lamenta Sara. Por isso, assumem, também choram. “Então eu choro por tudo e por nada”, admite Diana. Pelos bons e pelos maus motivos. “Perceber o sucesso deles, as pequenas vitórias, é algo que me deixa muito emocionada.” São os tais momentos que fazem tudo valer a pena. Como quando a mãe de uma menina que acompanhou há anos a convidou para ir à festa de formatura da filha, em Évora. E ela fez questão de ir. Como quando Sara foi a Cabo Verde visitar um rapaz que tinha acompanhado durante três anos no hospital.
“Acreditamos que isto que fazemos aqui dá saúde, que facilita um pouco a situação difícil em que se encontram. A ideia é pô-los a olhar para a frente, mesmo num momento difícil. Garantir que continuam a ver o horizonte.” Mais do que o Português, ou a Matemática, ou o Inglês, ensinar a esperança. Mesmo quando a doença a quer levar.
Fonte: Notícias Magazine
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