Professor catedrático da Faculdade de Motricidade Humana da Universidade de Lisboa, Carlos Neto, 69 anos, trabalha há mais de quatro décadas com crianças entre os 3 e os 12 anos. Os seus estudos e observações sobre o tempo, cada vez mais escasso, que os mais novos passam na rua, a brincar livremente com os amigos, fizeram dele uma voz inconformada numa luta para devolver as crianças ao exterior e ao contacto com a Natureza. O seu novo livro, Libertem as Crianças (Contraponto, 240 págs., €16,60, à venda a partir de dia 6), é uma espécie de grito de alerta para pais e educadores.
As crianças estão presas?
As crianças estão a ser impedidas de viver a infância de forma plena. Há um aprisionamento progressivo no contexto familiar, escolar e comunitário. O tempo de ser criança foi invadido por uma ditadura de agendas e atividades organizadas pelos adultos que não as deixam brincar livremente, em contacto com a Natureza.
O título do livro faz uma alusão subtil à vida de recluso, que sublinha o problema.
Num estudo internacional da Unilever, demonstrou-se que os presos têm mais tempo livre fora das celas do que têm as crianças no seu dia a dia. É uma mensagem fortíssima e preocupante. Deu origem a uma campanha cujo título era precisamente “Libertem as Crianças”. Como é possível as crianças não terem direito a brincar ao ar livre? Não é com brinquedos que têm de brincar, é com os materiais que a Natureza oferece.
Falta-lhes rua?
A decadência é de tal ordem que a rua como local de jogo está em vias de extinção. Antigamente, saíamos da escola e íamos para a rua brincar com os amigos até a mãe chamar para jantar. Hoje, as crianças não sabem o que são pirilampos, porque nunca saíram depois de escurecer. Não há mais perigo agora, somos dos países mais seguros do mundo. Há é uma perceção errada dos adultos, fruto de medos que se instalaram. Os casos do Rui Pedro e da Maddie danificaram a cabeça dos portugueses. E a comunicação social tem responsabilidade. A toda a hora passa imagens e mensagens que recheiam o nosso cérebro de um medo obsessivo que nos impede de dar autonomia às crianças. Veja-se onde param os carros nas escolas. Não ficam a 100 ou 50 metros do portão. Estacionam mesmo à entrada. Tenho alunos na universidade que os pais ainda os vão levar.
Acredita que houve uma diminuição drástica no número de joelhos esfolados e cabeças partidas, em relação a gerações anteriores?
Como é óbvio. Uma das missões deste livro é iluminar a cabeça dos adultos, pais e educadores, no sentido de devolverem as crianças à rua. Obviamente que os adultos têm de ter aqui uma supervisão, mas que seja tranquila e positiva. Não serve aquilo a que eu chamo de terrorismo do não. É preciso acabar com a linguagem do “sai daí que vais cair”, “olha que isso é perigoso e vais aleijar-te”, e substituí-la pelo “tenta que vais conseguir”.
Pode dar um exemplo concreto?
Repare naquele pai que está num parque infantil, frente a um escorrega. A criança começa a subir as escadas e o pai começa a tremer. Quando a criança chega lá acima, o pai entra em pânico. Só há duas soluções: ou vira costas e deixa a criança em paz; ou mantém-se forte, olha para o filho e conta até 15 enquanto ele executa a ação. A criança sai feliz do escorrega porque foi capaz de se superar. A superação é um conceito fundamental no desenvolvimento humano, assim como o tédio e a frustração. As crianças precisam de experimentar estes estados para ganharem confiança em si próprias. Assim que a ganham, devemos dar-lhes asas para voarem.
As crianças correm poucos riscos?
Há um recuo enorme com esta proteção excessiva. O risco é uma palavra mágica. Cada um de nós tem uma segurança muito grande pelo facto de ter vivido uma infância aventureira, muitas vezes até ultrapassando limites e obstáculos que os pais nem sonham. A confrontação com o risco permite-nos construir uma espécie de fortaleza interior, uma autoestima e uma autoconfiança que são fundamentais no nosso crescimento. O que temos hoje são crianças muito vulneráveis, muito frágeis, diria até com uma grande imaturidade e totós, porque não lhes é dada a liberdade de vivenciar a rua.
Diria que são pouco selvagens?
Com algum exagero, diria que era bom começarmos a pensar em ter crianças mais selvagens do que bem-educadas e quietinhas. É preciso saber equilibrar o corpo parado frente ao ecrã com a necessidade de o soltar, de forma livre e selvagem, em relação à Natureza, principalmente nas primeiras idades. O futuro é muito incerto e aquilo que estamos a ensinar hoje às crianças pode vir a não servir de nada, por isso devíamos estar a preparar estes nativos digitais para um mundo que vai implicar muita criatividade e capacidade de adaptação. É essencial desenvolver competências para saberem comunicar, lidar com problemas complexos, trabalhar em equipa, e terem pensamento crítico. Brincar, sobretudo no meio natural, é um comportamento que permite ao ser humano adaptar-se à adversidade, criar resiliência, aprender a tomar decisões e aperfeiçoar o controlo emocional.
É um treino para a vida adulta?
As crianças que não vivem a infância com abundantes experiências destas de que temos vindo a falar vão ficar marcadas para o resto da vida. Há uma correlação muito forte entre as crianças que brincaram muito e adultos empreendedores e felizes.
Há pressa dos pais em torná-las adultas?
Há pais que têm a expectativa de que a criança chegue à primeira classe já a saber ler, escrever e contar, sem perceberem que o mais importante era que elas tivessem os joelhos esfolados, que aparecessem em casa sujas, que brincassem à chuva. Tudo isso está proibido. Um dos maiores dramas dos autarcas é porem telheiros nas escolas para as crianças não apanharem chuva. É algo absolutamente satânico. No Norte da Europa, onde o clima é muito mais austero, as crianças andam todas cá fora. Em Portugal, se cai um pingo, vai tudo para dentro.
A pandemia veio agravar ainda mais a situação?
Antes do confinamento, as crianças já estavam confinadas, no que respeita à falta de tempo livre para serem crianças. Com a pandemia, agravou-se ainda mais. Isso tem consequências na saúde física, como o excesso de peso e o analfabetismo motor; e na saúde mental, com o aumento da ansiedade, da depressão, do stresse, da hiperatividade e do défice de atenção. Trabalho há 48 anos com crianças dos 3 aos 12 anos e, no regresso após o confinamento e as férias, vi excesso de peso e uma regressão muito acentuada das suas competências motoras. Algumas, ao fim de dez minutos de Educação Física, estão cansadas. Acham o suor esquisito e nojento. Significa que passam muito tempo no sofá, uma das maiores doenças do século. É uma hecatombe.
Que lhe parece a medida decretada em algumas escolas de reduzir o tempo de intervalo ou até de o passar dentro da sala de aula?
Esta pandemia do medo é pior do que o vírus. Aparafusam-se as crianças às cadeiras para ficarem quietas e caladas a ouvir os professores. Isto é um crime. Até à puberdade, é inaceitável estarem fechadas nas salas de aula sem poderem ir ao espaço exterior. Não é possível manterem a concentração durante tanto tempo. Temos de aliviar estas regras demasiadamente obsessivas. É lamentável fazer-se um caso daquela criança que partilhou o lanche com outra. São palermices sem sentido. Em Itália, já há professores a dar aulas no exterior. Há 100 anos, com a gripe espanhola, foi assim que se fez. Veio tudo cá para fora, os quadros, as cadeiras, as mesas… Parece que não aprendemos.
É contra o distanciamento social nas escolas?
Completamente contra. Quando regressaram agora à escola, as crianças vinham ávidas de contacto com os amigos e com os professores. Podemos ter a curto prazo robôs mais baratos, mas o professor é insubstituível. Obviamente que tem de haver regras sanitárias, mas não é essencial impedir que os corpos se toquem e abracem. A investigação tem demonstrado que as infeções não acontecem da escola para o exterior mas do exterior para a escola. Há que desanuviar a tensão no meio escolar, entre as primeiras idades. Ainda é preciso confirmar isto, mas já há indicações de que as crianças estão a ficar lesadas ao nível da autoestima, porque vivem com medo. A melhor estratégia é decretar o estado de emergência de brincar ao ar livre.
Os espaços de recreio são bons para brincar?
O que se vê hoje é betão e sintéticos. É desolador. Tiraram tudo o que era interessante. Os pauzinhos, as pedras, a relva, a areia, não há horta, não há nada. Tornou-se um espaço sem sabor e sem sentido. Se as crianças não têm desafios, não gostam de ir à escola. Hoje têm poucas oportunidades de perseguir, de serem perseguidas e de lutar. São brincadeiras proibidas no espaço escolar. Brincar ao toca-e-foge, aos polícias e ladrões, às escondidas, aos locais secretos… Se duas crianças estão a brincar à luta, são logo separadas, mas essas atividades lúdicas, que têm um fundo aparentemente agressivo, só o têm de forma simbólica. É o brincar ao faz de conta. Luto com o meu companheiro e a seguir dou-lhe um abraço. São ensaios corporais e estados de alma que são importantíssimos de serem vividos. Assim se ganha cidadania. Todos nós brincámos às lutas na infância e as crianças com quem lutámos ficaram nossas amigas para sempre.
É mais importante uma criança brincar livremente ou aprender a matéria?
O ensino explicativo, com as crianças sentadas a ouvir o professor, não tem sentido nos dias de hoje. Não é possível ensinar uma criança quieta. Corpos ativos dão cérebros ativos. As crianças têm de ser pequenos pesquisadores, principalmente nas primeiras idades. Devem poder experimentar aquilo que assimilam, e não memorizar o conhecimento para depois o explanarem num teste que dá origem a rankings sem sentido. A aprendizagem é um processo de descoberta e não de imposição. É preciso sair dos muros da escola e ir buscar conhecimento à comunidade. Porque não visitar um padeiro? Porque não ir observar um artesão? Porque não ir a um museu?
Atividades extracurriculares podem ser prejudiciais?
Depende. O tempo livre deve ser tempo da criança e, por isso, deve ser ela a escolher as atividades que lhe interessa fazer, de modo a retirar delas prazer. Mas uma coisa é a criança brincar conduzida pelo adulto ou em atividades organizadas, outra é a brincadeira livre.
E desporto?
Até à puberdade, deve-se experimentar várias modalidades, aquática, gímnica, desportos coletivos… E quem diz atividades desportivas diz atividades artísticas, como a música, a dança, a pintura, ou religiosas, que é a outra vertente mais procurada.
No caso do desporto jovem, com a pandemia, as competições estão paradas. Concorda?
O desporto deveria ser aquela atividade, em todos os níveis de competição, desde as crianças aos adultos, com tudo aberto. Porque é a melhor forma de ter um corpo resiliente e com mecanismos imunitários. Claro que teriam de ser cumpridas algumas regras básicas, mas não é aceitável que um grupo de jovens que pratica futebol, andebol ou basquetebol esteja “fechado”.
A culpa do aprisionamento das crianças é só dos pais e da escola?
Não, não é. Tem de haver coragem para implementar políticas amigas das crianças nas cidades, que passam por reabilitar a rua como local de jogo, de caminhadas, para andar de bicicleta e de skate. Precisamos de cidades verdes, em festa, que convidem as pessoas para o exterior, como na Idade Média se fazia no átrio da igreja. Temos de fazer das cidades uma espécie de átrio da igreja onde as pessoas se encontram, nem que seja para dizerem mal umas das outras.
Como foi a sua infância?
Mágica. Brincava na rua, com os meus amigos, até anoitecer. Andava sempre a pé, conheço todos os cantos de Leiria, a minha cidade. As crianças de hoje não têm esta perceção do espaço físico que as rodeia, não fruem o território e, portanto, não criam essas memórias fundamentais na construção da nossa identidade. Lembro-me de jogar à pedrada, ao berlinde, as fisgas eram instrumentos fantásticos, os piões, pescar no rio, atravessá-lo, assaltar o castelo, jogar à bola em espaços abandonados, subir às árvores… Agora, subir às árvores é uma atividade radical. Vivi a infância de forma plena, numa grande relação com o risco e os amigos, que ainda hoje são dos melhores amigos. Muitas vezes não são os da escola, são os amigos de aventuras.
Partiu a cabeça?
Em vários sítios. E tive feridas nos joelhos que duraram anos.
Fonte: Visão
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