Pedro já conquistou muito. Passou a apanhar o autocarro na Reboleira em direcção ao centro comercial de Alfragide. Trabalhava como estagiário ocupacional na secção de videojogos da Fnac, entre as 9h30 e as 12h30. Depois ia almoçar à Fundação AFID Diferença, onde é utente há onze anos. Por lá ficava durante a tarde e, no regresso a casa, apanhava outra vez o autocarro. De repente, o bicho microscópico chegou para encerrar as pessoas em casa e derrubar rotinas à sua passagem. E a independência e a autonomia, que demoram anos a conquistar, também tiveram de se recolher.
Catarina ainda não curou “o vazio” que sente no coração. “Eu estava habituada a ter uma rotina, uma vida com a minha família, com o nosso grupo de amigos. Para mim, deixar de ter essa rotina e ver a minha vida completamente alterada foi muito complicado”, diz a jovem de 23 anos. Depois, veio o medo. “Fiquei muito ansiosa, muito nervosa e fiquei com muito medo do que poderia acontecer. Fiquei com medo de perder alguém da minha família, dos meus amigos aqui da AFID. Fiquei com medo de apanhar covid e ter de ficar em isolamento.”
Catarina Seixo convive com a síndrome de Tourette, uma perturbação neurológica “diagnosticada com tiques e com comportamentos obsessivo-compulsivos, com manias”, como ela própria explica. Pedro Carvalho, 27 anos, vive com síndrome de Asperger, uma perturbação do espectro do autismo, que lhe limita “a vontade de viver independente”.
Fazem parte do grupo de jovens adultos que frequentam o Centro de Actividades Ocupacionais (CAO) da Fundação AFID Diferença, em Alfragide (...). Em meados de Março, quando a pandemia de covid-19 começava a alastrar-se no país, foi preciso encerrar valências e serviços nesta instituição de solidariedade social, fundada há 15 anos para apoiar crianças, jovens com deficiência e idosos. O CAO, onde normalmente passavam os seus dias 115 utentes, foi encerrado de um dia para o outro.
Quando a vida é passada numa tentativa de integração na sociedade, como é ter de se afastar dela? Como é não poder tocar em quem tem no toque, no abraço, a sua forma de expressão? Como se compreende o mundo sem esse afecto?
Com as actividades na AFID e na Fnac suspensas, Pedro fechou-se em casa com os pais, que são médicos, e com as duas irmãs mais novas. O confinamento foi um aborrecimento, diz, só interrompido pelos jogos na Playstation. Olhando para esses meses, confessa, sentiu “a falta do contacto com os colegas da AFID e da Fnac”.
Isabel Silva até gostou de estar em casa com os pais e os sete irmãos, de passar tempo no computador, de fazer videochamadas com os amigos. Mas há um vazio que a jovem de 22 anos, portadora de trissomia 21, ainda não conseguiu colmatar: as saudades da amiga Filipa, antes uma presença diária nas actividades do CAO, mas que agora tem de estar mais resguardada. Filipa é uma das utentes do lar residencial que funciona na Fundação AFID, que acolhe pessoas com deficiências profundas ou que não têm quem cuide delas.
Esta foi uma das medidas a que a pandemia obrigou: reduzir os contactos entre os utentes do CAO, que vão e vêm todos os dias, e os utentes que pernoitam no lar residencial, para evitar possíveis contágios.
“Para alguns é difícil compreender, porque iam a casa aos fins-de-semana. Foi preciso trabalhar com eles, explicar-lhes porque é que não podiam ir. Explicar-lhes que isso não é fácil. A verdade é que eles se foram adaptando a que a família viesse cá vê-los, mas que não podem sair, entendendo que lá fora há perigo”, resume Ana Cristina Fernando, directora de Acção Social da Fundação AFID Diferença.
Os dias de Ricardo Galante, 47 anos, um dos utentes há mais tempo na instituição, também se alteraram por completo. “Deixei de ir aos treinos de boccia, deixei de ir à escola onde eu ajudo. Sou telefonista de uma escola. Não podemos ir a casa com tanta regularidade e quando vamos a casa temos de fazer o teste e depois estar em isolamento 14 dias”, conta.
Ricardo tem uma paralisia cerebral desde que nasceu, que lhe tolhe os movimentos, mas sem défice cognitivo. Vai conversando com as técnicas, tentando levar o dia-a-dia com alguma tranquilidade. “Nós sentimos as saudades da família e dos amigos, mas temos de lidar com isto. Eu percebo a situação que vivemos e sei que não posso ir muito além do que as regras permitem.” Vai jogando as cartas, ao dominó, lendo e escrevendo para ocupar os dias.
“Eles vivem de relações e emoções”
Segundo a Ordem dos Psicólogos, há cerca de 71 mil portugueses com uma deficiência intelectual, como paralisia cerebral ou lesão medular, que “enfrentam desafios de comunicação e de percepção da realidade e podem ter dificuldades em entender a situação e em seguir as precauções gerais de segurança de forma independente”, diz a Ordem num documento com recomendações para pessoas com deficiência, cuidadores e decisores neste cenário de pandemia.
Também as pessoas com défices cognitivos, como perturbações do espectro do autismo ou outras síndromes, pelas dificuldades ao nível da comunicação e da relação, podem revelar “dificuldades de adaptação do contexto às características dos próprios, e também podem necessitar de apoio mais regular durante este período”.
Ana Cristina Fernando diz que ainda é cedo para se perceberem as consequências da pandemia no desenvolvimento destes jovens. “Por agora, vamos gerindo as emoções e vamos tentando dar resposta àquilo que sentem, tentando sempre dar-lhes segurança, estabilidade emocional. Acho que, para já, é um penso rápido.”
O dia-a-dia é um constante jogo de equilíbrio. “Temos de cumprir as regras, mas também temos de permitir que as pessoas continuem a ter uma vida o mais normal possível”, resume a responsável. “Eles vivem de relações e das emoções. Às vezes não é fácil manter esse distanciamento e, em algumas situações, não podemos mesmo deixar de o fazer.”
Nos casos de pessoas com deficiências mais profundas, não há como contornar a proximidade para que sintam segurança e que não estão a ser rejeitadas. Nem que seja um toque camuflado pelo látex de umas luvas. “Temos uma jovem invisual com uma deficiência intelectual grave e é necessário que ela sinta que a mãe está presente. Calçam luvas, temos todos os cuidados, mas, sobretudo na fase inicial, foi preciso que a pessoa sentisse que a mãe estava presente para não criar uma instabilidade comportamental”, explica a assistente social.
O regresso ao CAO, em Junho, foi feliz, mas ansioso, depois de tanto tempo em casa. “Para eles é a felicidade ao contacto com os colegas, mas por outro lado alguma instabilidade porque voltaram para um contexto diferente, com regras diferentes onde não podem estar juntos como eles gostam.”
Quando regressaram, tudo era muito diferente. A máscara tem de estar sempre na cara a tapar a boca e o nariz, era preciso mudar de roupa e de calçado, manter o distanciamento. Nem todos os amigos estavam. Numa casa de afectos, deixou de poder haver abraços e beijinhos. Para Pedro, foi difícil adaptar-se a estas novas rotinas. “É chato. Não gosto de usar máscara”, diz, para depois sintetizar o que todos têm vontade de dizer: “Estou farto da covid.”
Catarina costuma olhar para o telemóvel à espera de boas notícias, que alguém diga que o vírus desapareceu. “Desde que começou a pandemia, as minhas manias aumentaram. Eu chateio os meus pais sempre com as mesmas conversas”, conta. Ainda assim, diz-se uma privilegiada. “Eu sei que estou muito melhor do que outras pessoas.”
“A vida tem mesmo de continuar”
Nas salas dos ateliers de cerâmica ou de pintura, onde antes cabiam 15 utentes, só podem estar agora cinco, seis. Na manhã em que lá estivemos, a árvore de Natal erguia-se à entrada, mas ainda despida de alegria. As decorações de Natal eram retiradas dos arrumos onde passam todo o ano.
No atelier de pintura, as batas estão sarapintadas de tinta, sinal de muito trabalho já feito. Pintam-se postais de Natal e marcadores de livros. “Todo o foco do nosso trabalho é levar estas pessoas ao exterior. A deficiência pode ser um estigma, uma barreira que não permite ver a pessoa que está mesmo lá dentro. A pintura é uma linguagem alternativa, que permite que a pessoa ponha cá fora algo que o represente. Quem vê uma pintura destes jovens, fica com um ponto de partida muito mais interessante para depois conhecer a pessoa”, diz Nuno Lacerda, monitor do atelier de pintura.
O desafio, diz a monitora do atelier de cerâmica, Cristina Santos, é encontrar formas de estarem juntos, mas afastados. Transformar um abraço noutra coisa. “Somos mais palhaços, falamos mais alto. Tem de haver mais conversa, mais passeio, mais paciência.” Mais música e mais dança. Mas não nos enganemos: “Isto é mais duro do que parece.”
No atelier de cerâmica não se molda e coze só barro. Trabalham-se competências para a vida lá fora: “Respeitar o outro, conversar com o outro, esperar pela peça e pelo outro. São coisas que vão acontecendo numa oficina e que são muito importantes para a manutenção da vida deles lá fora.”
O trabalho agora, de manhã à noite, é dizer-lhes para não se juntarem, não se abraçarem, não se beijarem, explicar-lhes porque é que todos temos de o fazer. Eles vão compreendendo. Por vezes, chamam eles próprios à atenção, quando uma máscara escorrega para debaixo do nariz.
Para Cristina, todos ali estão em pé de igualdade. “Eu acho que aquilo que nós perdemos, eles perderam, assim como nós vamos ganhar, e eles vão ganhar também. Nós temos diferenças. Só.”
Pedro quer recuperar a rotina e a autonomia de antes. “Quero voltar a trabalhar na Fnac. Ter mais liberdade, sem usar máscara, poder cumprimentar as pessoas.” Por agora, Catarina não esconde estar preocupada com o Natal. “Mas já começo a meter na cabeça ‘eu aguento isto e o Natal será como tiver de ser’”, diz. “O que eu desejo é que venha a vacina, que as pessoas cumpram, que as pessoas não achem que isto é uma brincadeira, porque não é. Há muitas pessoas a morrerem e, por favor, cumpram com as regras.”
Quer retomar o trabalho na creche da Santa Casa da Misericórdia, onde costuma dar uma mão. “Eu adoro crianças, de brincar com elas, dar-lhes comida.” Sonha ter um trabalho e um namorado, constituir uma família “para ser mais feliz e independente”. Que a olhem além da deficiência. “Às vezes as pessoas olham para nós e vêem-nos pela nossa deficiência e não nos vêem como pessoas. Vêem-nos como incapazes. Têm de pensar que nós somos capazes como qualquer outra pessoa”, diz.
Esta quinta-feira, 3 de Dezembro, celebra-se o Dia Internacional das Pessoas com Deficiência, o dia que Cristina Santos gostaria que já não fosse necessário. Nesta luta diária de mostrar o que se é, muito além do que a deficiência por vezes esconde, a pandemia é mais um desafio. “Nós não nos entendemos numa sociedade que está assustada. Não sabemos bem o que fazer, mas temos de fazer. Vamos tentando trabalhar com eles, com o peso de tudo isto. Tentar fazer ver que a vida tem mesmo de continuar.”
Fonte: Público
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