Os méritos da investigação liderada por Miguel Castelo-Branco, da Universidade de Coimbra, levaram ao prolongamento do apoio da FLAD, com mais cem mil euros. Realidade virtual e ressonância magnética funcional fazem parte da pesquisa sobre uma doença que afeta milhares de famílias.
ara nós significa muito, uma vez que é a possibilidade de reforçar uma área que é pouco desenvolvida em Portugal, que é a investigação clínica numa fase muito precoce do conhecimento, que é tentar encontrar novas opções para o tratamento do autismo". As palavras são cuidadas, o tom cauteloso, discurso próprio do cientista que evita verdades definitivas, até que tudo esteja devidamente testado, verificado e consolidado. Numa sala da Fundação Luso-americana para o Desenvolvimento (FLAD), em Lisboa, o investigador da Universidade de Coimbra explica à TSF a procura por opções de tratamento "não apenas farmacológicas, mas também usando novas tecnologias como a realidade virtual, para tentar melhor problemas de comunicação e socialização" entre os doentes com autismo.
O projeto que terminou agora o seu terceiro ano de execução, "focou-se em estratégias em que a investigação emerge da bancada do laboratório, passa pelos modelos animais e chega ao doente". Trata-se de um projeto interdisciplinar e transdisciplinar (da engenharia informática à psicologia, passando pela biologia e bioquímica) em que a neurociência é utilizada, tal como "a imagem médica, a neurofisiologia, para tentar perceber os mecanismos de funcionamento do cérebro, ligados à comunicação, como o reconhecimento de expressões faciais", tentando que essa panóplia de conhecimento possa ser mais usada no quotidiano dos portadores de autismo.
A ressonância magnética funcional, "em que vemos como o cérebro funciona enquanto a pessoa executa tarefas, olhando também para a química do cérebro", já que este é feito de substâncias, umas que contribuem para a excitação dos neurónios, outras para a sua inibição. A equipa liderada por Castelo-Branco tenta relacionar o bom ou mau funcionamento desses sistemas de excitação ou inibição com circuitos do cérebro que têm que ver com "a componente das emoções e da parte social". Com isso, os investigadores conseguem "medidas da capacidade de comunicação, capacidade cognitiva no domínio das emoções e da interação social", relacionando esses valores com as intervenções a efetuar junto do doente, sejam elas farmacológicas ou baseadas na realidade virtual. Em suma, "a investigação de origem académica a gerar novas oportunidades na área clínica".
Miguel Castelo-Branco admite a importância da ajuda financeira da FLAD para "um projeto ambicioso", sendo que o apoio da fundação permitiu catapultar e "multiplicar o financiamento que temos para este tipo de investigação em projetos europeus". O projeto consegue assim estar integrado no maior consórcio internacional, o AIMS-2-TRIALS que envolve associações de doentes, universidades, clínicas, stakeholders da indústria, para desenvolver novos tratamentos na área do autismo". Com essa aposta nas parcerias, "o projeto não se limitou a investigar mecanismos básicos de alteração da inibição neuronal em modelos animais e humanos em colaboração com o grupo do Prof Alcino Silva da Universidade da Califórnia, mas procurou relacionar esses achados com propostas de intervenção terapêutica, em funções cognitivas que são alteradas por esse tipo de disfunção".
O projeto europeu de que faz parte é da ordem dos 55 milhões de euros, com Castelo-Branco a ter acesso na Universidade de Coimbra a um apoio de cerca de 800 mil euros: "a FLAD quase que nos permitiu duplicar o financiamento para esta área".
Muita da investigação e projetos académicos, clínicos e associativos na área do autismo, surgem pela proximidade dos investigadores com a doença. Castelo-Branco não é exceção: "sem dúvida, falo um bocadinho em causa própria, tenho um filho com autismo, sou vice-presidente de uma associação". A multiplicidade de papeis não o incomoda: "as associações e os pais procuram respostas e a nossa investigação está muito focada nas respostas". Do diagnóstico à reabilitação vai o caminho que parte do sistema de saúde até às IPSS (Instituições Particulares de Solidariedade Social) e o investigador coimbrão admite que, nesta área, há muito a fazer: "por exemplo, os fármacos que existem ainda são muito agressivos e têm muitos efeitos secundários; e portanto, eu ao ser pai e fazer parte de uma IPSS, ajuda-me enquanto cientista na aplicação da investigação que fazemos".
O investigador assume que este é um projeto de um grupo de investigação com vasta "experiência em atividades em parceria, essenciais neste projeto, incluindo intervenções no terreno, e até projetos de "assisted living", em residência autónoma para portadores de autismo". O investigador dá conta do trabalho efetuado: "Desenvolvemos técnicas de inteligência artificial que usam marcadores de electroencefalograma associados à inibição neuronal e com utilidade diagnóstica no autismo.
Conseguimos também relacionar a alteração da inibição neuronal com os mecanismos na base da epilepsia, frequente nestas condições. Dar relevância às doenças associadas a estas síndromes é muito importante para a qualidade de vida destes doentes, e levou-nos ao contacto muito próximo com várias associações de doentes, ligadas ao autismo, tuberose esclerosa e neurofibromatose tipo 1. Estes estudos podem originar a possibilidade de encontrar novas formas de melhorar a abordagem terapêutica à epilepsia e outras condições, frequentemente encontrada nestas síndromes".
Autismo mais frequente neles do que nelas
Porque é que o autismo é tão mais frequente entre o sexo masculino? À pergunta da TSF, o investigador licenciado em 1991 pela Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra (FMUC), admite que "esse é um dos grandes enigmas" e "um dos nossos grandes objetivos de investigação", desconhecendo-se, de momento, se se trata de uma vulnerabilidade do sexo masculino ou de alguma proteção do sexo feminino face à doença. Castelo-Branco está a estudar "quais os determinantes biológicos que originam esta diferença". Refutando que seja uma lei universal, não deixa de lembrar que, "normalmente, quando é diagnosticado numa menina, o autismo tende a ser mais grave".
Sendo o cérebro muito diferente entre os dois sexos e sendo o autismo uma doença do neuro-desenvolvimento, "provavelmente a resposta vai estar nessas fases iniciais de desenvolvimento, em que começa a haver uma bifurcação do cérebro masculino e feminino". Sobre os doentes, o investigador afirma que "há pessoas altamente bem sucedidas, apesar de terem um estilo cognitivo e de socialização peculiares, altamente funcionantes e, por outro lado, temos pessoas com deficiência intelectual".
A heterogeneidade é a regra, há capacidade de "ajudar as pessoas a adaptarem-se ao meio em que vivem, mas há sobretudo que perceber que nem tudo pode ser explicado pela genética: "isto é uma doença complexa, porque não há só os genes, há também a forma como o nosso cérebro e o nosso corpo se desenvolvem, na vida intrauterina mas também na vida pós-natal". Castelo-Branco afirma que o dogma "um gene, uma doença", é coisa do passado e "talvez só aconteça em um ou dois por cento dos casos e pessoas com o mesmo conjunto de genes, porque se desenvolveram de forma diferente, têm diagnósticos diferentes". Há uma interação genes-ambiente. Devido às "dificuldades na comunicação e na socialização", o autismo "raramente é diagnosticado antes dos três anos de idade e, infelizmente, ainda não temos ferramentas sólidas para diagnosticar o autismo" antes dessa idade.
O autismo na idade adulta
O investigador revela a importância dos trabalhos feitos com a unidade de psiquiatria dos HUC, uma vez que com os adultos "os problemas são completamente diferentes. Como é que a pessoa se integra na vida adulta? Muitas vezes estas pessoas ficam isoladas, deprimem, não têm emprego, não são bem compreendidas pela sociedade e têm apenas IPSS com poucos meios e capacidade de resposta, infelizmente". No autismo, "cada caso é um caso e a forma de intervir tem de ser personalizada; os custos da intervenção são bastante elevados e nós estamos a tentar, através das novas tecnologias, minimizar até as horas de contacto com profissionais de saúde". E dá um exemplo com base na realidade virtual: criámos um jogo virtual para ensinar as pessoas a seguir percursos de autocarro para pessoas que tinham medo ou sentiam não ter a autonomia para usar transportes públicos; publicámos, tivemos contacto de escolas de fora do país, como uma escola em Nova Iorque por exemplo, porque isso são ferramentas que os ajudam a serem autónomos; o grande desafio é ensiná-los a serem autónomos e a integrarem-se na sociedade", o que pode ser feito ensinando-os a "usar os transportes públicos no mundo virtual, que depois eles sentem vontade de aplicar no mundo real".
Quem é Miguel Castelo-Branco?
Miguel Castelo-Branco nasceu em Coimbra. Em 1991, licenciou-se em Medicina pela Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra (FMUC). Mais tarde, optou por fazer o doutoramento, tendo integrado o Instituto Gulbenkian de Ciência em Oeiras. A última fase dessa formação passava pelo trabalho em laboratório num dos muitos institutos acreditados no programa. Dado o seu interesse pelas neurociências, Miguel Castelo-Branco optou por um laboratório na Alemanha que estudava os mecanismos neuronais associados à visão. Ali concluiu o doutoramento e fez depois um pós-doutoramento.
Mais tarde partiu para a Holanda, onde trabalhou na área da neuroimagiologia cerebral e deu aulas como professor auxiliar na Universidade de Maastricht. O regresso a Portugal veio na sequência de um convite para lecionar na FMUC (Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra), bem como para fazer investigação na área da visão e do cérebro, no então, recém-criado Instituto Biomédico de Investigação da Luz e Imagem (IBILI), onde foi o coordenador até final de 2016. Miguel Castelo-Branco é também diretor do Instituto de Ciências Nucleares Aplicadas à Saúde (ICNAS), uma infraestrutura de referência na área da imagem médica.
Fonte: TSF por indicação de Livresco
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