Um P e um a, Pa, um P e um e, Pe, um P e um i, Pi… Poucos não saberão a cantilena. Com ela se vão juntando consoantes e vogais. São os primeiros passos na aprendizagem da leitura. Até ao Natal, as crianças aprendem o P. Mais uns meses e na Páscoa a maioria saberá ler. “O ensino da leitura segue uma ordem”, começa por explicar Cristina Pereira, professora do 1.º ciclo. Aprendem-se as letras começando pelas vogais. Depois os ditongos: um a e um i, ai; um u e um i, ui. A seguir, faz-se a junção da consoante com as vogais e com os ditongos. Começam a surgir as palavras. Um P e um ai, Pai. E com elas as frases. Parece simples. Mas não é.
Ana Paula Vale estuda na área da psicologia comportamental as questões da aprendizagem e das dificuldades da leitura. “A maneira como se aprende a ler está intimamente ligada ao tipo de linguagem, de língua e de ortografia que temos de aprender a ler.” Aprender a ler no sistema alfabético, como o nosso, é diferente de aprender a ler nos sistemas silabários ou logográficos, como os do Japão e China.
“A maneira como a nossa mente processa a informação, que está codificada no sistema alfabético, exige que aprendamos de uma determinada maneira”, esclarece a investigadora que é também coordenadora científica e fundadora da Unidade de Dislexia da Universidade de Trás os Montes e Alto Douro. “Os sistemas alfabéticos representam a fala, aquilo que dizemos, ao nível dos fonemas. Fonemas são ideias abstratas que fazemos sobre os sons, mas para facilitar vamos dizer que são os sons mais pequenos que existem nas palavras. Por exemplo, mar tem três fonemas, m/ a/ r. Cada fonema é representado por um grafema, a unidade da ortografia, que pode ser uma letra ou duas. Quando escrevemos nh, temos duas letras mas um grafema.” O que a ciência tem mostrado, sublinha Ana Paula Vale “é que existem condições essenciais que as crianças têm de dominar para poderem ler e escrever num sistema alfabético [ ver caixa ] e estas condições são postas em prática com métodos de ensino fónicos.”
O melhor método
Existem várias formas de ensinar a ler, mas cada vez mais consenso científico de que os métodos fónicos são os mais adequados. Pelo menos no caso português. “Porque servem a aprendizagem do mecanismo que envolve o funcionamento dos sistemas alfabéticos e dão uma grande autonomia às crianças”, defende Ana Paula Vale.
“Se uma criança aprende a associar um certo número de letras a fonemas ou de fonemas a letras (sete ou oito associações) consegue ler palavras que nunca viu, mas sejam compostas por essas letras e esses fonemas. E até é capaz de ler algumas palavras com letras ou fonemas novos. Às vezes falta só um bocadinho da palavra para a criança ler tudo, mas como conhece o resto é capaz de ler.”
Ana Paula Vale recorda o dia em que o filho conseguiu ler a palavra tranquilo sem nunca a ter visto antes. A mãe desvenda as razões científicas da proeza: “Ele sabia decodificar uma parte da palavra e, depois, uma outra coisa muito importante, essa palavra já existia no seu vocabulário. Por isso, ele conseguiu ligar as duas informações e ler uma palavra nova.” Fazer com que as crianças consigam semelhante “proeza”, continua a investigadora, “só é possível usando métodos fónicos no ensino da leitura. Se as crianças não tiverem esse instrumento da aprendizagem das relações entre os fonemas e os grafemas, que lhes dá grande autonomia, não conseguem fazer isso.”
Na teoria, aos métodos fónicos contrapõem-se os métodos globais. “Partem das palavras inteiras e assentam na ideia de que as crianças devem primeiro aprender palavras cujo significado conhecem para depois, a pouco e pouco, começarem a aprender as unidades pequenas que fazem parte dessas palavras”, elucida Ana Paula Vale, sem poupar nas críticas à sua utilização: “Não dão autonomia à criança no início da aprendizagem, porque na realidade as crianças reconhecem as palavras que memorizaram, mas a memória tem um limite.”
Mesmo que na sala de aula o método pareça surtir efeito, Ana Paula Vale garante que os métodos globais "são completamente não recomendados". "A investigação mostrou muito claramente que as crianças que não têm tanto jeito para a leitura e aquelas que têm dificuldades não vão conseguir aprender a ler com estes métodos.” Ora, no cenário do ensino da leitura, contam-se muitos outros métodos, com muitas designações. “Mas são apenas variações destes dois”, resume Ana Paula Vale.
Da teoria à prática
Na sala de aula, os professores do 1.º ciclo dizem não fazer uso “exclusivo” de um só método para ensinar as primeiras letras. Sobretudo, por causa da diversidade de alunos que têm pela frente, aponta a professora Cristina Pereira. “Com a inclusão na escola de vários alunos, seja com dificuldades de aprendizagem, autismo ou trissomia, os professores começam por utilizar o mesmo método para todos, mas depois acabam por experimentar outros métodos quando os alunos não progridem.” O método mais comum é o analítico-sintético que se inclui nos métodos fónicos. Como recurso, a professora refere o método das 28 palavras que faz parte dos métodos globais.
De uma maneira ou de outra, o ensino da leitura não é um ato isolado. Não implica apenas o professor titular, ou seja, o que está mais tempo letivo com a turma. Como faz questão de frisar Cristina Pereira: “Agora, existem equipas educativas, professores titulares, professores do ensino especial que estão na escola para todos os alunos, professores de apoio, centros de apoio à aprendizagem e vários projetos também direcionados às dificuldades na leitura.”
Ainda assim, elas existem.
Nos quase 20 anos a lecionar no ensino público na região do Porto, a professora confirma o aumento do número de alunos com dificuldades na leitura e na escrita. Não só nos primeiros anos do primeiro ciclo, como nos seguintes. Contam-se problemas na motricidade e até mesmo ao nível óculo-facial, aponta a professora. Culpa do excessivo deslizar dos dedos no ecrã, garante. Que, depois, torna difíceis movimentos simples. Como levantar os olhos do papel e focar o que está escrito no quadro. “Os alunos não estão habituados a olhar, reter e transcrever a informação para o papel.” Consequência: “Mesmo no quarto ano e a copiar as frases do quadro, os alunos dão muitos erros ortográficos, porque lhes falta a capacidade de visualizar o quadro, estão demasiado habituados a visualizar os ecrãs.”
Rui Lima, professor do 1.º ciclo e diretor pedagógico de um colégio privado, na região de Lisboa, não consegue dizer se os alunos têm mais ou menos dificuldades na aprendizagem da leitura. “Agora, tal como há 20 anos tenho alunos que chegam ao primeiro ano a saber a ler e outros que têm muitas dificuldades...” O professor tem, todavia, outra perceção sobre o problema. “Sinto que a tarefa de ler para os alunos é menos prazerosa.” E avança com uma explicação: “Os alunos estão muito focados na visualização de imagens e ler torna-se uma tarefa menos motivadora para eles.”
No colégio onde leciona, tal como na escola onde dá aulas Cristina Pereira, o ensino da leitura não obedece a um método específico. “Usamos uma abordagem mais tradicional, partindo de uma história, depois de uma frase, depois de algumas palavras acabando na letra. Pretende-se sempre que os alunos identifiquem as palavras e não a identificação letra a letra.” Estratégias que Rui Lima identifica como tendo por base o método fonomímico que associa palavras e gestos.
Aqui, o recurso a outros métodos também só acontece quando os alunos não aprendem com o método mais usado. “Em crianças com muitas dificuldades, por vezes, usamos o método das 28 palavras, mas podemos usar outros. Acabamos por fazer uma mistura de vários métodos, não sendo fiéis a um único, até porque as crianças são bem diferentes umas das outras.”
Eduardo Gonçalves, professor destacado no âmbito do Centro de Investigação e Intervenção da Leitura, da Escola Superior de Saúde do Porto, admite que “os professores vão tomando mais consciência dos próprios métodos de ensino da leitura quando têm crianças com dificuldades”. No dia a dia, tem por missão avaliar e intervir em crianças em risco de dificuldades na leitura.
O projeto está direcionado a crianças do primeiro ano e do pré-escolar, que podem ter cinco ou seis anos. Com elas, Eduardo Gonçalves trabalha, precisamente, a consciência fonológica. Ou seja: o conhecimento que a criança tem do som da letra e a associação fonema-grafema. “O objetivo não é pôr a criança a ler, é prevenir o insucesso”, explica. São incluídas no projeto apenas crianças com níveis de consciência fonológica abaixo dos que são expectáveis para a idade. Mas há cada vez mais.
Duas décadas de ensino fazem Eduardo Gonçalves concluir que na base das dificuldades para a aprendizagem da leitura está, essencialmente, “a falta de tempo”. Seja “a falta de tempo, dos pais para estimular as crianças, a falta de tempo para os professores aprofundarem questões relacionadas com os métodos e, por fim, falta de tempo curricular para investir mais nas crianças com dificuldades”.
Aprender a ler e a escrever é uma atividade não natural, dizem os investigadores. Ana Paula Vale, explica a razão desta evidência: “O nosso cérebro está biologicamente preparado para a linguagem oral, mas não está biologicamente preparado para ler e escrever. Aprender a ler e a escrever não tem nada de intuitivo tem que ser tudo treinado, tudo muito consciente e muito laborioso.”
Existem três condições que têm de ocorrer em simultâneo para que as crianças aprendam a ler no sistema alfabético. Explicações retiradas do depoimento de Ana Paula Vale coordenadora científica e fundadora da Unidade de Dislexia da Universidade de Trás os Montes e Alto Douro.
“A primeira condição é que a criança compreenda a mecânica do funcionamento do sistema alfabético. Isto é compreenda o princípio alfabético que é a ideia de que a cada fonema corresponde um grafema.
A segunda condição é que a criança aprenda a decodificar e a codificar. Ou seja, aprenda a estabelecer associações de fonemas e letras, aprenda que uma certa letra tem um certo som e vice-versa. Aprender a decodificar envolve a aprendizagem de dois componentes essenciais: a consciência fonética e a aprendizagem das letras e dos sons das letras.
A terceira condição é que as crianças aprendam a decodificar de tal maneira com exatidão e prontidão que este processo se torne automático. E que passado algum tempo do início da aprendizagem, aproximadamente um ano, as crianças sejam capazes de ler muitas palavras de forma automática."
Fonte: Educare
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