terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

Deficiência: Não há cá coitadinhos

Passamos mais ou menos 40 semanas a imaginar como será o nosso bebé. Pela nossa estranha e complexa mente de grávidas passam questões como a cor dos olhos, a cor dos cabelos, o peso à nascença, a personalidade futura… Imaginamos se o pequeno ser que carregamos na nossa barriga vai ser um bom aluno e, mesmo sem querer, começamos a planear-lhe o futuro. Arrisco dizer que, nesta fase, pensamos em quase tudo. Excepto na possibilidade de ele nascer com uma deficiência ou limitação que nos obrigue a enterrar o nosso bebé imaginário e a abraçar o real que, na verdade, é alguém que nunca sonhámos.

E vamos deixar-nos de hipocrisias. Não é nenhuma bênção ter um filho deficiente. Sabem aquela ideia defendida por uns quantos idiotas (desculpem, não me ocorre melhor adjectivo) que retrata todos os meninos deficientes como anjos e presentes de Deus? É um perfeito disparate. Uma criança deficiente que, mais tarde, se a sua condição o permitir, se tornará num adulto deficiente, não é nenhuma entidade divina vinda ao mundo para nos iluminar. Uma criança deficiente é um ser humano, como qualquer um de nós, mas que implica uma alteração infinitamente maior nas dinâmicas familiares para que possa crescer e desenvolver o seu potencial. E esse potencial pode ser enorme ou minúsculo mas, de uma forma ou de outra, merece todo o investimento do mundo.

Chovia muito no dia em que soube que o meu filho era surdo profundo. E eu, que até me tinha aguentado tão bem no consultório médico, chorei compulsivamente agarrada à minha almofada a pensar que o meu menino, o meu bebé que sonhei perfeito, nunca iria conhecer o som da chuva. Acho que chorei tanto nessa noite que sequei e, desde aí, a surdez do Pedro não voltou a levar-me uma única lágrima. Quando me levantei, pela manhã, sem ter dormido um minuto, estava perfeitamente decidida: o meu filho seria tão feliz quanto eu pudesse, a surdez não seria escondida e jamais permitiria que fosse tratado como um coitadinho.


Nesse dia, escrevi um texto duro que, umas semanas mais tarde, publiquei no blogue. O título continha vernáculo pesado e, por isso, não vou aqui reproduzi-lo. Mas posso dizer que, dois anos depois, continuo a pensar da mesma forma: a diferença, sendo uma prova duríssima, não deve ser escondida. É preciso falar abertamente sobre os problemas dos nossos filhos, sejam visíveis ou não, é preciso trazer a diferença para a rua e, se queremos que a inclusão seja mais do que um conceito da moda, temos de ser nós, pais destas crianças, os primeiros a dizer que elas estão aqui e que, à sua maneira, são absolutamente maravilhosas.

Antes que me esqueça, deixem-me dizer-vos que o nosso país de mar e sol não é exactamente simpático para deficientes, independentemente do tipo de deficiência. Maus acessos, pouco civismo, má vontade, parcos apoios… A lista é infinita. A maioria dos pais de crianças diferentes vive com o cinto tão apertado que mais parece um garrote. As terapias, os medicamentos, as faltas constantes ao emprego e os atestados de longa duração implicam um esforço financeiro que a maioria das pessoas desconhece. Mas que tem de ser feito.

E não, os pais de crianças diferentes não são super-guerreiros como tantas vezes vejo escrito. Os pais de crianças diferentes são exactamente iguais aos outros pais: gente que faz o que pode para dar aos filhos o melhor do mundo.

E repito mil vezes ou mil e uma, se for necessário, que os nossos filhos, os nossos meninos não sonhados, os bebés que nunca imaginámos, são agora reais. São autistas, têm paralisia cerebral, são surdos, têm osteogénese imperfeita, são hiperactivos ou oligofrénicos. Não são anjos. Não são coitadinhos. São os nossos filhos. São os nossos maravilhosos filhos.

Carmen Garcia

Fonte: Público

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